quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

UM PAÍS SEM PÉ NEM CABEÇA
(Sobre os massacres nas prisões brasileiras)
  

   Ainda hoje me lembro de um artigo, que li numas dessas revistas de curiosidades científicas, que tratava da existência de um sinistro treinamento militar na China, milhares de anos antes de Cristo. Neste treinamento se praticava um jogo (o tsu-chu) ligeiramente semelhante ao futebol, que era jogado com cabeças humanas, como forma de ultrajar soldados inimigos e comemorar batalhas vencidas. Tempos depois, fiquei sabendo também que, na Idade Média, adultos e crianças arrumavam-se, como quem vai para uma quermesse, para testemunhar atrocidades, como enforcamentos em praças públicas e pessoas sendo torradas em enormes fogueiras. Essas informações, mais do que meras curiosidades, serviram para me mostrar que a violência sempre existiu, e que o ser humano sempre olhou para ela como quem assiste a um grandioso espetáculo operístico.  

  Aonde eu quero chegar com esse pequeno introito? No massacre ocorrido nas penitenciárias de Manaus e de Roraima, no mês de janeiro do corrente ano. Em um dos vídeos postados pelos presos na internet, vemos, de forma vertiginosa, uma espécie de futebol macabro jogado com a cabeça de um preso de uma facção inimiga. A cena é de uma violência tão mórbida e gratuita que comoveria até mesmo o coração de Vlad Tepes, o Empalador. Na mesma hora associei a cena ao que eu havia lido muitos anos atrás na referida revista, o que só me fez confirmar que a crueldade, em todas as épocas, é uma companheira inseparável da experiência humana. 

     Mas o que me chama mais a atenção nessa situação toda é a impressionante euforia com que alguns indivíduos comemoram, sobretudo nas redes sociais, o banho de sangue ocorrido nos estados de Manaus e de Roraima. Às vezes, desconfio que aqueles que soltaram pombinhas da paz no Natal e foram tocados pelo espírito do nascimento de Cristo, talvez tenham sido os mesmos que iniciaram 2017 se deliciando com o horrendo quadro cubista formado por pernas e braços humanos que rolaram pelos becos escuros e imundos daquelas masmorras medievais. 

    Para esses cavaleiros medievos – com suas espadas em riste e embebidos pelo discurso populista, simplista e imoral do excelentíssimo espadachim Jair Bolsonaro, que já afirmou em público que desejava que matassem mais 200.000 vagabundos – o problema da violência são as pessoas que defendem os direitos humanos. Como se tais pessoas estivessem aplaudindo, ingenuamente, a bandidagem e a impunidade, quando, na verdade, elas estão propondo, de forma séria e racional, uma maneira eficaz de se construir uma sociedade mais justa e harmoniosa.   

   As estatísticas em relação ao sistema prisional brasileiro são estarrecedoras: o Brasil possui a quarta maior população carcerária do mundo e o número de presos dobrou nos últimos 10 anos (já são mais de 600.000), enquanto países como a Suécia e a Holanda diminuem continuamente o número de penitenciárias (Só no ano de 2012 a Holanda fechou 8). Isso significa dizer que o sistema prisional brasileiro prende muito, mas é ineficiente, pois o índice de violência só tem aumentado nas cidades e a reincidência do detento no mundo do crime é um fato quase certo. É bom dizer que não se trata de mais um capítulo do repisado debate entre esquerda e direita. Todos nós – sejamos comunistas, esquerdistas, direitistas, elitistas, liberais, ateus ou cristãos – devemos estar atentos para o fato de que, realmente, estamos perdendo a luta para o crime organizado. E, não há como negar, é notório que também somos fortemente atingidos por seus desdobramentos... 

   Não sou ingênuo e sei que muitos dos bandidos que promoveram aquele morticínio desenfreado, seguramente, não conseguirão mais se reintegrar à sociedade. Na realidade, o erro já começou antes de eles serem amontoados naqueles celeiros sórdidos. Em verdade, não quero proclamar aqui a natureza boa do ser humano e tirar a culpa dos que cometem crimes bárbaros, dizendo que tudo depende das contingências sociais e históricas nas quais o indivíduo está inserido. Não é tão simples assim! Freud dizia, em O mal-estar na cultura, que, mesmo que todas as pessoas vivessem em condições sociais iguais, ainda assim teríamos graves problemas e a sociedade não deixaria de ser agressiva (não é exatamente assim que ele diz, mas o sentido é esse). Ele estava certo, acredito. 

    Lembremos, entretanto, de que havia gente presa em Manaus e Roraima por pequenos furtos e que a maior parte dos que foram trucidados não estavam detidos por assassinato e nem tinham sido julgados. E o que dizer sobre o perfil dos encarcerados nos calabouços brasileiros? Mais de 60% são pretos, pobres e não conseguiram terminar o ensino fundamental. É difícil acreditar, de fato, que o sujeito que esfaqueia e separa a cabeça do corpo de uma pessoa – tal como se faz ao comer um camarão na praia – possa ser reintegrado ao mundo social. Porém, não dá para colocar todo mundo no mesmo saco. Há presos provisórios que não são, a princípio, de facções criminosas e só entram nelas de uma forma obrigatória. Em 2015, mais de 39% da população carcerária do Brasil era provisória. No Piauí, há o caso de um detento que ficou quase 2 anos presos em regime fechado, sem ser julgado, por ter roubado 200,00 de um comércio (dados do portal G1).  Sinceramente, quem furta uma joia não pode ser colocado lado a lado com um integrante da FDN e do PCC com 10 anos de carreira. Sabemos que, em grande parte, essas facções são arquitetadas dentro dos próprios presídios. E a solução, nem de longe, é o extermínio indiscriminado.  

   Vale ainda lembrar que, por pouco, não se tornaram igualmente vítimas os presos em regime semiaberto, que estavam improvisados na Cadeia Pública Vidal Pessoa, no centro de Manaus – onde se confirmou 5 assassinatos. É que estes foram liberados temporariamente pelos gestores de segurança pública, por conta da falta de estrutura do prédio. Os que estão em regime semiaberto respondem por crimes como não pagamento de pensão, depredação do patrimônio público ou pequenos furtos. Devemos verdadeiramente indagar aos que são favoráveis a essa batalha sangrenta: será que o sujeito que não pagou uma pensão alimentícia ou que furtou um pacote de biscoito num supermercado tem que ser punido de forma justa como manda a lei ou deve ser desossado como um frango e esquartejado como o carneiro do poema de Augusto dos Anjos?  

     Não dá para aceitar a simplória e impensada equação propalada pelos justiceiros (que se autoproclamam “cidadãos de bem”, mas, muitas vezes, são pessoas corruptas na vida cotidiana, ou sustentáculos do tráfico e do comércio de armas porque usuários de cocaína e de outros entorpecentes, ou até mesmo violentas no ambiente familiar): quanto mais bandidos morrerem, mais a sociedade ficará limpa e segura. Não nos enganemos: os fogueteiros de hoje que estão servindo de bucha de canhão nas favelas, ainda com seus 10 anos de idade, “se tudo der certo”, serão os Marcola e os Beira-mar de amanhã. É evidente que esses bandidos bucha-de-canhão que vão para o xilindró – e devem ir mesmo, só que de uma forma diferente – são apenas uma pequena peça do gigantesco e complexo quebra-cabeça da violência urbana e do narcotráfico. Também não vamos achar, de forma pueril, que quanto mais se violentar um indivíduo, mais ele se arrependerá de seus crimes. É exatamente o contrário: quanto mais acossado, mais ele responderá com agressividade. 

   O teatrólogo Augusto Boal dizia, em entrevista, que o problema do Brasil não é de diagnóstico, pois todos nós sabemos por que esse país não funciona. O diagnóstico sobre esse momento que enfrentamos é, de fato, demasiado óbvio: falta de investimento na educação, sucateamento e superlotação dos presídios (no caso do Complexo Prisional "Anísio Jobim", em Manaus, o número de presos era quase três vezes mais do que a capacidade), desorganização do estado e organização do crime, falta de um debate claro e inteligente sobre o problema do tráfico de drogas, desestruturação da polícia, péssima distribuição de renda, corrupção na política e na vida cotidiana do brasileiro, etc, etc, etc. Realmente, nesse país “sem pé nem cabeça”, onde as ideias estão fora de lugar e a corrupção se transformou num câncer em estado de metástase, ao invés de arrolarmos os problemas, devemos é começar a agir com inteligência e honestidade, a sociedade civil em parceria com o Estado. O mundo do crime tem que deixar de ser um mundo lucrativo e sedutor.

    O fato é que cada morte desse genocídio medieval, que chegou ao espantoso número de 100 pessoas e que pode se multiplicar ainda mais, não dá para explicar apenas pela ótica do senso comum, que diz que uns nascem mesmo criminosos e a solução é fazer uma “limpeza geral”. Todo esse cenário de guerra civil é produto de uma enorme falha social, é a prova cabal da falência do Estado, é um sintoma da desorganização e da negligência de um sistema político corrupto, é o descaso de todos nós brasileiros com nossa aldeia e com nossa vida em sociedade. Não foi somente um acidente, como mencionou o presidente Michel Temer, mas sim a crônica de uma morte anunciada! 

   Na verdade só estou dizendo o “óbvio ululante”, tomando de empréstimo a famosa expressão de Nélson Rodrigues, mas é preciso que repitamos milhares de vezes, alto e bom som: não podemos mais, vestidos de uma frágil máscara de “cidadãos de bem”, aplaudir a matança e incitar a violência diária (“sangue chama sangue”, como está anunciado em Macbeth, de Shakespeare), como se não tivéssemos nada a ver com as mazelas desse país. Estou certo de que nesse massacre morreram muito mais do que 100 pessoas. Cada um de nós, brasileiros, matou e morreu um pouco ali também... 


(Paulo Andrade de Lima - professor e escritor)

quinta-feira, 13 de outubro de 2016




UM NOBEL PARA BOB DYLAN, UM PRÊMIO PARA A CANÇÃO

Alfredo Werney


Os puristas e os “idiotas da objetividade”, como dizia Nélson Rodrigues, dirão que dar um “Nobel de Literatura” para um músico popular como Bob Dylan é um absurdo, um sintoma do mundo pós-moderno, superficial e avesso à inteligência. Já está chovendo de beletristas e intelectuais na internet colocando em xeque e até mesmo esculachando, sem argumentações consistentes, a premiação concedida ao songwriter estadunidense. Muitos leitores estão desenterrando, sem saber, um ódio ancestral que há – pelo menos por parte de alguns literatos, como o brasileiro Bruno Tolentino – entre escritores acadêmicos e compositores populares. Não deixa de ser mais um capítulo, com pequenas nuanças, da chatíssima e repisada polêmica travada entre os que defendem a chamada “alta cultura” e os que estão mais abertos aos produtos da “indústria cultural”.

Não acho, sinceramente, que o “Nobel de Literatura” é um atestado de qualidade indiscutível, tampouco uma forma de medir a importância da obra de um escritor, mas é inegável a força que esse prêmio exerce no processo de divulgação do trabalho de artistas contemporâneos. De qualquer modo, fiquei bastante feliz com a escolha de Bob Dylan. Parece agora que estamos reconhecendo que a letra de canção é sim uma modalidade de literatura e que ela é capaz de discutir assuntos com profundidade e de apreender as experiências mais complexas do mundo. Na verdade, essa escolha da Academia Sueca contribui para abalar mais ainda os conceitos cristalizados de literatura. Não dá mais para sustentar, em épocas de cibercultura, que o único suporte da arte literária é o livro. Pensar assim é também esquecer que a rica tradição da literatura portuguesa, por exemplo, se inicia com a oralidade dos trovadores, que foram mestres no processo de articulação entre texto e música. E o que é Dylan se não um trovador moderno, que renovou essa tradição por meio de letras lúcidas e de alta elaboração literária?

Além da gigantesca importância de Dylan para a estética da canção norte-americana e mesmo para a canção universal, é visível que sua obra está presente no imaginário coletivo de forma mais intensa do que a literatura de muitos escritores acadêmicos. No Brasil, essa riqueza da música popular fez com que ela ocupasse, muitas vezes, um espaço maior do que as obras dos escritores stricto sensu, o que fez da canção uma forma de riflessione brasiliana, como disse Zé Miguel Wisnik. Não me sinto constrangido em dizer que, na adolescência, minha mente foi povoada muito mais pelas ideias e letras de Cazuza, Renato Russo, Humberto Gessinger e Raul Seixas, do que pelos livros dos vários escritores que estudei na escola – escritores estes que eu lia, na maioria das vezes, de forma superficial e apressada. Não estou dizendo, é evidente, que a música popular é mais importante e que ela pode substituir a literatura dos livros.  Só acredito que são duas experiências de grande valor, e não excludentes, na formação cultural de uma pessoa.

Espero que, com esse prêmio – um prêmio que, queiramos ou não, tem uma enorme repercussão nos meios de comunicação de massa –, o trabalho dos cancionistas seja cada vez mais valorizado e apreciado em todo o mundo. É fundamental que, no caso do Brasil, o artesanato literário de um Paulo César Pinheiro, de um Aldir Blanc e de um Carlos Rennó, só para citar alguns de nossos principais letristas, conquiste um lugar de maior destaque e seja lido de forma mais cuidadosa. Desejo ainda que, a partir dessas modulações que vem ocorrendo no universo conceitual da literatura, os interlocutores da canção não deixem de ler os clássicos, mas também não se sintam menor ou menos inteligente porque preferem Caetano Veloso, Chico Buarque, Cole Porter e Bob Dylan a um escritor consagrado...

sábado, 1 de outubro de 2016

Novela "Velho Chico"





VELHO CHICO: QUANDO A TELENOVELA VIRA ARTE...


Alfredo Werney


Nunca escrevi uma linha sequer sobre as telenovelas, ainda que fosse unicamente com a intenção de criticá-las. Mas agora me arrisco, mesmo sabendo que se trata de um produto audiovisual que, em geral, não apresenta nada que instigue verdadeiramente nossa percepção. Na verdade, passei algumas semanas sem assistir “Velho Chico” (TV Globo, 2016), até mesmo porque as repentinas guinadas do roteiro e as mudanças cênicas provocadas pela estranha morte do ator Domingos Montagner, diminuiu bastante meu interesse pela obra. Na semana passada, entretanto, pude apreciar – quase como quem assiste a um filme de arte – as paisagens sonoras e visuais dessa novela. De “puro entretenimento”, como meus amigos inteligentes costumam chamar as novelas (e eles tem razão, se pensarmos na maioria delas), “Velho Chico” atingiu a condição de expressão artística. Ouvi até alguns colegas exclamarem: “Parece filme!”.

Desde o capítulo de estreia, no dia 14 de março de 2016, essa obra dirigida por Luiz Fernando Carvalho e escrita por Benedito Ruy Barbosa e Bruno Luperi, mostrou-se diferente da maioria das produções do mesmo gênero. Vários elementos me despertaram a atenção: a rigorosa elaboração de seus planos visuais, a ousadia da direção e da fotografia, o tom épico utilizado para representar o sertão, o bom elenco, a beleza das tomadas à maneira dos faroestes de Sérgio Leone, a montagem expressiva e a trilha musical de Tim Rescala. Além disso, fiquei feliz com a bela homenagem que fizeram para o escritor Gabriel Garcia Márquez. Em algumas cenas víamos o coronel Jacinto de Sá Ribeiro (Tarcísio Meira), esquecido em sua fazenda, com apenas seu galo imponente preso aos seus braços, esperando o retorno do filho (Rodrigo Santoro), jovem boêmio que residia em Salvador-BA. A narrativa trazia componentes que nos reportava claramente ao romance “Ninguém escreve ao coronel”, do ano de 1961.

O capítulo 169 de “Velho Chico”, apresentado na semana passada, mostrou a busca desesperada de Afrânio (Antônio Fagundes), ao longo do rio São Francisco, por seu filho Martim (Lee Taylor). Luzes estouradas, planos cheio de flashes e de cortes vertiginosos sincronizados com ruídos de trovões, sobreposição de imagens e de sons dando um efeito de simultaneidade, trilha musical engenhosa que oscilava entre o registro clássico e o popular, acompanharam a saga do personagem pelo sertão nordestino. A metáfora da cena me pareceu clara: o universo simbólico das imagens nos remetia a uma passagem de “Dom Quixote”, de Miguel de Cervantes. Afrânio, num ataque de loucura, por se sentir culpado pela relação degradada com o filho mais novo, começou a vaguear pelo sertão. Dentre esses momentos de suposto devaneio, ele atacou, com uma espécie de cajado que levava nas mãos, os moinhos de vento da beira do rio. O personagem, já despido de sua peruca (isto é, de sua arrogância de coronel), conversava com ele mesmo, a partir de um diálogo dramático e revelador, fazendo uma sondagem interior de suas atitudes e realizando um balanço final de sua existência. Cícero (Marcos Palmeira) representou na referida cena uma espécie de Sancho Pança do sertão. Ele tentava, sem êxito, trazer o coronel de volta à “realidade”, mostrando que tudo aquilo era um momento de alucinação. O fato é que as aparições de Martim, vista por Afrânio em tomadas subjetivas, confundia nossa percepção. Estaria o pai, de fato, vendo o filho ou era apenas devaneio?

Não se tratava de cinema, no rigor do termo, mas estávamos diante de uma obra televisiva muito particular, produzida com intenções artísticas e não tão somente com o intuito de provocar efeitos emocionais no público. O que víamos na TV eram cenas filmadas magistralmente por meio de planos sugestivos e de uma montagem mais próxima da linguagem fílmica, com imagens de embarcações fantasmas e carcarás sombrios, revelando a degradação psicológica de um pai arrependido pelo distanciamento do filho. A tomada em mergulho, que mostrou Afrânio caminhando na areia, cercado pelas águas do velho Chico, sintetizou todo o capítulo. Ela revelou a angústia da figura paterna, cuja ganância e soberba fez com que se enclausurasse dentro de si mesmo, criando uma verdadeira ilha. E o que dizer da trilha? A música que Tim Rescala elaborou para a sequência foi composta por uma solitária e soturna flauta, ressaltando a solidão e o vazio interior de Afrânio – um instante de total comunhão entre música e dramaturgia.

Um dos planos mais bonitos, a meu ver, foi quando o personagem atacou os moinhos e a câmera se afastou lentamente dele, através de um expressivo travelling vertical.  A câmera passou a filmá-lo numa plongé cheia de sugestões, fazendo com que a imagem do coronel golpeando o moinho quase sumisse da tela e fosse “esmagada” visualmente por este objeto, com suas gigantescas hélices. Ali era o momento em que o pai se apequenava diante do mundo e se perdia na paisagem sertaneja: uma metáfora de sua própria condição. Toda a construção cênica, mais uma vez, foi muito bem apoiada pela música de Rescala, que optou pelo uso de um efeito de delay nos instrumentos de cordas. Vale notar também que o galho de árvore que o personagem carregava na mão, algumas vezes, estendia-se por cima de seus ombros e nos fazia lembrar a imagem de Cristo na cruz.

De uma forma geral, o capítulo foi construído a partir de referências bíblicas (lembremos que o diálogo entre o Afrânio coronel e o Afrânio pai era uma espécie de reconstrução da tentação de Cristo no deserto), de uma ambientação dramática que procurou recriar o universo de Dostoievski (um dos autores preferidos de Luiz Fernando Carvalho, segundo ele mesmo), da ideia de culpa da mitologia cristã e de intertextos com “Dom Quixote”. Tudo isso orquestrado de maneira tensa, tropicalista, inventiva. Uma síntese bastante feliz, muito distante do que se espera de uma dramaturgia feita para o entretenimento do grande público. Sem exageros, pude ver nesse capítulo cenas como há muito tempo não via nem mesmo no cinema brasileiro de arte. Digo isso não só pelos intertextos presentes, que se tornou uma das marcas do estilo de Carvalho, mas também pela concepção cênica e visual como um todo. Aliás, vale dizer que os intertextos não representaram meras referências, mas sim ressonâncias que ampliaram a força da dramaturgia, tornando-a mais rica e mais profunda. É verdade que estes procedimentos artísticos já foram muito experimentados, do cinema clássico ao moderno. Mas, ainda assim, este fato não nos tira o encanto de vê-los numa narrativa de telenovela. Como nos disse Ferreira Gullar, estamos diante de um gênero audiovisual realmente limitado, porque é um produto comercial que se apoia, quase sempre, em estereótipos. E, na visão de Gullar, a culpa dessa limitação não é nem tanto do diretor e dos produtores, mais sim das próprias regras impostas pelo gênero.

Acredito que, para muitos, minha fala deve estar soando excessiva. De qualquer modo, vale a pena, ainda que momentaneamente, nos despirmos do preconceito, “raspar a tinta com que nos pintaram os sentidos” – como nos disse o poeta Alberto Caeiro – e apreciarmos algumas passagens dessa novela, que, embora tenha pontos baixos, consegue alçar à categoria de arte em muitos momentos de sua estruturação dramática. Na realidade, “Velho Chico” me faz pensar no “Caso Pestana”, aquele do conto de Machado de Assis. Pestana era um exímio compositor de polcas, mas as renegava, porque queria ser reconhecido por suas sinfonias eruditas. Passou a vida escondendo o que sabia fazer de melhor, para se maquiar de compositor clássico e se mostrar culto. Guardada as proporções, parece ser o mesmo caso da telenovela: o Brasil é um dos países que melhor produz telenovelas no mundo, mas também é nesse mesmo país que a população letrada mais zomba das produções feitas para TV, sobretudo os intelectuais de esquerda que acreditam ingenuamente que a Globo é responsável por todas as mazelas sociais do país. Em outros termos: parece que nos sentimos profundamente envergonhados pelo fato de fazermos boas telenovelas.

É evidente que a telenovela não é, em sua quase totalidade, alta dramaturgia. Mas penso que, além de entreter, ela pode também promover momentos de rara beleza e de deleite estético, como foi esse capítulo 169, construído com a notável atuação de Antônio Fagundes, ator com vasta experiência no cinema.  Não creio, seguindo os passos da maioria de meus amigos que gostam de cinema e de boa literatura, que a telenovela atinja o nível das grandes experiências cinematográficas e literárias, até mesmo pela sua própria natureza mercadológica e pela sua longa duração, mas a influência que ela exerce no cotidiano e no imaginário do brasileiro não pode simplesmente ser negligenciada. Vale refletirmos sobre o enunciado do professor de comunicação Ciro Marcondes Filho, quando ele diz: “O elemento vivo das pessoas, seu ‘motor’, aquilo que as faz ter vontade de viver, não está no real, no cotidiano, nem no mundo do trabalho e sim no imaginário. E a televisão é a forma eletrônica mais desenvolvida de dinamizar esse imaginário”.

É visível o nó que há no Brasil entre o pensamento artístico mais elaborado e a cultura de massa, o que fez José Miguel Wisnik dizer que nossa MPB, por exemplo, é uma nova forma de gaia ciência, uma forma de riflessione brasiliana. Essa tensão não resolvida é o ponto nevrálgico das experiências tropicalistas de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Os Mutantes, Tom Zé e outros. Por sinal, alguns desses compositores e intérpretes estão incluídos na trilha sonora da telenovela. O fato é que essa mistura de entretenimento com contemplação mais intelectualizada parece se intensificar quando assistimos a determinados capítulos de “Velho Chico”. Não há como negar que essa obra televisiva possui, desde a música inicial de Caetano Veloso e o painel espalhafatoso de sua abertura, fortes marcas do discurso da Tropicália.




domingo, 8 de maio de 2016



SAMBANDO NA CARNIFICINA

Alfredo Werney

(Aos meus amigos, os professores Mário, Ítalo, Wilbert e Elkejer).


Sempre que se fala em canção vem logo a nossa mente a ideia de uma melodia que se articula com uma letra e juntas formam um todo significativo. E é bem verdade: o núcleo de sentido de uma canção, como observou o semioticista Luiz Tatit, é exatamente a melodia e a letra. Mas o próprio pesquisador fez questão de mencionar em seus livros a importância de outros elementos construtores de sentido, tais como a interpretação, a instrumentação, a harmonia e o arranjo. Esses elementos, embora não façam parte diretamente do corpo de sua teoria, são frequentemente aventados. Por sinal, muitos dos discípulos do músico paulista deram prosseguimento ao longo projeto de se estudar categorias semióticas que estão para além desse núcleo (texto e melodia).

O fato é que eu não queria começar uma simples crônica musical com uma dicção excessivamente teórica. Mas foi o jeito, confesso que não encontrei outra saída. De qualquer maneira, essa breve explanação da teoria semiótica da canção foi simplesmente para mostrar que o arranjo, ainda que não seja o foco principal do trabalho do cancionista, desempenha um papel de grande importância na construção de seu discurso músico-literário. Isso é um assunto que, na prática, todo músico já sabe, mas nossa escuta musical, na maioria das vezes, é tão displicente e fragmentada, que deixamos de lado esta expressiva arte. Digo isto porque o arranjo é um elemento tão especial para a música que alguns chegam a tratá-lo como uma arte verdadeiramente autônoma. Paradoxalmente, ele é um dos pilares do discurso musical, mas parece estar além dele. Existem, por exemplo, grandes arranjadores que não se aventuram a compor três notas sequer de uma simples cançoneta. Por outro lado, há excelentes cancionistas que nada entendem dessa técnica.  E existem músicos completos, que dominam os dois ofícios, como Pixinguinha, Moacir Santos, Tom Jobim, Wagner Tiso e Edu Lobo.

Agora vamos ao assunto propriamente dito. Sempre que eu ouvia despretensiosamente o Sambô, aquela banda de samba misturado com rock que surgiu em Ribeirão Preto-SP, não dava muita atenção ao seu trabalho artístico, até mesmo porque não me dizia muita coisa. Em geral, achava a voz do cantor desafinada e estridente, as soluções instrumentais repletas de clichês sem graça, o ritmo repetitivo e sem variações de dinâmica e os arranjos de mau gosto. No entanto, não era nada que me incomodasse profundamente.

Certa vez, retornando de uma viagem rotineira com uns amigos professores – todos eles pessoas de uma boa educação musical, mas há momentos na vida de pura descontração em que a gente ouve de tudo – eu pude escutar no carro um disco por inteiro da famigerada banda. Passei então a perceber muita coisa, juntamente com os amigos, que eu não notava. A mais gritante delas foi o total descompromisso daquele grupo musical com os arranjos. A maior parte do repertório da banda consistia unicamente em canções consagradas que se transformaram em sambas mais apressados. Uma música me chamou mais a atenção do que outras: era a grave e bela canção da banda irlandesa U2, “Sunday Bloody Sunday” – faixa presente no álbum War, lançado no ano de 1983. Uma obra feita em tom de crítica política, descrevendo a violência do “Domingo Sangrento”.

Na versão original, a canção do U2 inicia com um ostinato (trechos musicais que seguem um padrão de repetição) da bateira, que se assemelha ironicamente a uma marcha militar, principalmente pelo uso da caixa. Logo após entra a guitarra, que faz um glissando na região aguda e toca um arpejo simples, criando a sensação de algo circular. De forma sugestiva, o ritmo da bateira, casado com um contrabaixo que executa células rítmicas fortes e em staccato, nos faz lembrar os disparos dos militares. Ouvimos também, em algumas passagens, a guitarra executar notas longas e agudas que geram um contínuo efeito de tensão (gritos de crianças em desespero?). Já a voz de Bono mostra-se com um quê de lamento, de alguém que fala carregado de angústia. Entram na música também outras vozes que cruzam com a do vocalista e criam uma espécie de comunhão, dando o efeito acústico de um canto de coletividade. As insistentes repetições do coro “Sunday Bloody Sunday” fazem com que o refrão fique ressoando na memória, como se o eu lírico nos obrigasse a lembrar, a todo o instante, a violência do evento narrado. A música gradativamente vai se tornando mais intensa, até sofrer uma suavização da dinâmica, findando-se aos poucos. O efeito geral produzido é muito bonito. É possível identificarmos, por meio da organização dos sons, uma narratividade, uma descrição da paisagem sonora do “Domingo Sangrento”. Isso porque, entre outros elementos de grande expressividade (como a letra e a interpretação), estamos diante de um arranjo bem estruturado, inventivo, que agrega muitas informações ao conteúdo do texto poético.

Muitos já devem saber, mas insisto em fazer um brevíssimo resumo do acontecimento. O “Domingo Sangrento” foi um confronto entre católicos e protestantes ocorrido em Londonderry, na Irlanda do Norte, em janeiro de 1972. Milhares de manifestantes, muitos deles jovens, protestavam pelos direitos civis de católicos. Além disso, postavam-se contra a dura política do Governo Britânico, que prendia, sem ordem judicial e de maneira indiscriminada, pessoas suspeitas de conspiração contra as organizações governamentais. Na ocasião, tropas britânicas dispararam contra os manifestantes, que estavam desarmados, o que deixou catorze (algumas fontes afirmam ter sido treze) católicos mortos e dezenas feridos. Dentre as pessoas feridas havia mulheres. Foi um episódio trágico da História da Irlanda, país que ainda hoje enfrenta problemas de convivência social entre comunidades católicas e protestantes.

E o que tudo isso tem a ver com o tratamento que o Sambô deu a “Sunday Bloody Sunday”? Expliquemos. Essa música, que virou um dos grandes sucessos do U2 e, de certa maneira, um símbolo da dor coletiva de uma nação, foi convertida num samba agitado e brejeiro. Através do arranjo, modicou-se o andamento, o fraseio e o ritmo. O acompanhamento instrumental – executado por banjo, percussão, bateria e teclados – ficou totalmente afastado do caráter e da concepção musical da composição do U2. Além disso, a versão contou com o “auxílio luxuoso” da interpretação de Daniel San (um cantor de voz nasalizada e de péssima dicção) que expressou em sua performance, do primeiro compasso até a última pancada do surdo, uma alegria irradiante.

Foi a partir de então que comecei, seriamente, a me indagar: Como é possível uma banda dar uma dimensão festiva e eufórica a uma obra que trata de uma página tão triste da História da Europa? Como se pode fazer um arranjo de uma canção originalmente tão grave e melancólica, com o intuito de torná-la um canto de celebração da vida noturna e um convite ao rebolado? Para ser sincero, eu até acho que os integrantes do Sambô, assim como a maior parte de seu público, devem saber, pelos menos de forma superficial, o que se passa no conteúdo da letra de “Sunday Bloody Sunday”. O que eu tenho certeza é que esses músicos nada compreendem sobre a força de sentido que um arranjo pode produzir (refiro-me principalmente à gravação ao vivo em DVD).  Não entendem que esse componente pode transfigurar conteúdos, dar um novo caráter ao discurso do compositor, induzindo o ouvinte para leituras totalmente equivocadas do texto poético. E mais ainda: que o mau emprego dessa técnica pode resultar em efeitos de sentido catastróficos. Musicalmente, o grupo também já conseguiu borrar outros clássicos do rock, como “Satisfaction” (The Rolling Stones) e “Rock and Roll” (Led Zeppelin). O resultado talvez tenha sido um pouco menos desastroso, já que são obras que não tratam de dramas coletivos.

Outra opção bastante equivocada, a meu ver, foi a escolha do samba para representar o universo angustiante de “Sunday Bloody Sunday”. Lembremos que o samba é uma confluência de expressões, uma síntese entre ritmos de raízes africanas que aportaram na Bahia e ritmos urbanos do Rio de Janeiro (sobretudo o maxixe e o choro). Desde sua origem – recordemos daquele que é considerado o primeiro do estilo a ser registrado, “Pelo Telefone” (1917) – esse gênero tem uma estreita relação com a malandragem, com a euforia dos morros cariocas, com o espírito deliberadamente dionisíaco. É evidente que há sambas tingidos com uma tonalidade mais soturna e dramática, como alguns clássicos do samba-canção. Mas esses são exceções. No geral, ele é ainda visto como uma espécie de panaceia para todos os dissabores da vida social, como se constata na bela composição “A voz do morro”, de Zé Keti: “Eu sou o samba / Sou natural daqui do Rio de Janeiro /Sou eu quem levo a alegria/ Para milhões de corações brasileiros”.

Quando se transforma uma obra musical que versa sobre uma tragédia coletiva num pagode qualquer feito para um público em estado de êxtase se saracotear em uma casa de shows, há nisso um desrespeito que extrapola a esfera da estética musical. Honestamente, não desejaria que minhas palavras soassem com um tom muito moralista (talvez eu não consiga), mas vejo nisso consequências éticas. Não é purismo de minha parte, nada tenho contra ousadias musicais. Estou certo de que, muitas vezes, um arranjo bem pensado pode despertar o interesse do interlocutor por uma canção que, a princípio, ele nem ligava tanto. Sei também que o tratamento dado pelo Sambô à composição do U2 não se trata, é óbvio, de uma possível ironia, pastiche ou paródia – o que ultrapassaria as fronteiras da sensatez.

O caso aqui é bem diferente. Basta que vejamos, em uma tradução literal e sem preocupações poéticas, o que diz um trecho da letra da música do U2: “Garrafas quebradas sob os pés das crianças / Corpos espalhados num beco sem saída / Mas não vou atender ao clamor da batalha/ Ele me encurrala, me encurrala/ Contra a parede / Domingo, domingo sangrento”. Sinceramente, é difícil ver um texto doloroso como esse, que trata de uma tragédia que não sai da memória do povo irlandês, reduzir-se a uma festa carnavalizada. É demasiado perverso ver inúmeros rostos felizes rebolando aos sons dos guizos do pandeiro e cantando em uníssono: “Domingo, domingo sangrento!”.

Voltemos agora para o universo do arranjo musical. Dá para notarmos, se fizermos um paralelo entre a faixa original da banda irlandesa e a catastrófica versão feita pelo Sambô, a dimensão que o arranjo ocupa na construção de sentido do discurso musical. Ele não é mera roupagem. Está para a linguagem musical como a fotografia está para o cinema, pois tem um poder de criar climas psicológicos, de despertar sensações, de produzir efeitos sobre nossa sensibilidade. Ao se alterar o andamento, a articulação das notas e o ritmo de uma música, inserir notas e timbres sem uma intenção estética clara, o arranjador pode trazer graves consequências para o sentido da canção.  Isso se levarmos a música popular a sério e não como um simples entretenimento de fim de noite, como o fez a banda do estado de São Paulo. Quem aprecia e estuda a rica tradição da música popular do Brasil sabe que ela é muito mais do que uma forma de catarse coletiva. Ela é um espaço de fusões, de debates de ideias, de exposição de nossas contradições. A MPB, desde o surgimento do lundu e o maxixe, tem se mostrado um terreno fértil, por meio do qual podemos compreender de forma mais orgânica a cultura brasileira.

E ainda há muitos ouvidos desavisados que acreditam que o Sambô é uma banda cult, porque os músicos propõem-se a fazer “releituras” de clássicos da música brasileira e estrangeira, mesclando o pop e o rock com o samba. Na realidade, os que escutam de uma forma descuidada, podem ter a impressão de que esse grupo musical, através de fusões, criou uma linguagem sonora própria e alternativa. Puro engano! Não quero dizer que a banda não tenha bons músicos (ela tem), mas essa ideia de hibridismo e fusão na música brasileira há muito tempo não é mais novidade. De forma sistemática e intencional, esses procedimentos surgem na MPB desde o balanço de Jorge Ben e do radicalismo da Tropicália (na década de 1970). Na década de 1990 esse espírito é igualmente retomado, com algumas reconsiderações estilísticas, pelo movimento “Manguebeat”.

Trilhando por outros caminhos, o que o Sambô faz é apenas misturar instrumentos que pertencem a gêneros musicais diferentes (por exemplo: colocar uma guitarra distorcida num samba tradicional, ou um banjo e um cavaquinho no meio de um rock padrão). No rigor do termo, não há hibridismo. O que há é um amontoado de timbres que se mesclam, muitas vezes desordenadamente. Seria uma espécie de “hibridismo” empobrecido e facilitado, feito para causar um falso impacto, pelo fato de se mostrar exótico. Um sintoma muito comum do esvaziamento linguístico e cultural que se incrustou na atual música brasileira.


É inadmissível que um grupo musical, que possui um público e uma visibilidade na mídia considerável, cometa um deslize tão assombroso. Não faltou a esse grupo somente competência musical, mas bom senso estético, inteligência e consciência da força comunicativa que a canção possui. E, além de tudo isso, faltou ética. Um cristão, por mais rasa que seja sua religiosidade, sabe que não se pode zombar, perversamente, das desgraças alheias. Perdoem-me pelo exagero – exagerado que sou – mas, ao ver em DVD o ridículo arranjo do Sambô, tive a estranha sensação de estar ali, ao lado daquele público insano, sambando em meio a uma carnificina!

sexta-feira, 18 de março de 2016





ZIZI POSSI: ENTRE A PALAVRA E O SOM MUSICAL


Alfredo Werney

As paisagens sonoras do nosso dia-a-dia nem sempre são muito convidativas. Somos bombardeados de informações, muitas vezes desnecessárias, que vazam pela TV, pelos rádios, pelas ruas, pela internet. Um amigo meu dizia, com razão, que somos obrigados a passar boa parte da vida ouvindo não exatamente aquilo que queríamos ouvir, mas o que os outros nos impõe. Ao entrarmos nos ônibus, nos cinemas, nos shoppings, nas lojas, nos restaurantes e bares não podemos, na maioria das vezes, escolher a música que nos agrada. Nem mesmo podemos deixar de ouvir algo que julgamos indesejável, já que a percepção sonora não é seletiva como a visual. O fato é que esse excesso de estímulos auditivos nos faz perder um pouco da sensibilidade musical. Em geral, costumamos perceber as variadas paisagens sonoras de forma fragmentada, descuidada, sem profundidade, o que dificulta a construção de uma escuta analítica. 

O show da cantora Zizi Possi, realizado no dia 8 de março de 2016, no “Teatro 4 de Setembro” (Teresina), além do deleite estético que me proporcionou, me fez recuperar essa vontade de desenvolver, cada vez mais, uma escuta analítica. Digo isso pensando nas ideias da educadora musical Teca Alencar de Brito, para quem “escutar é perceber os sons por meio do sentido da audição, detalhando e tomando consciência do fato sonoro”. Está além da experiência de ouvir, já que ouvir é um processo puramente fisiológico. “Escutar implica detalhar, tomar consciência do fato sonoro”.

O cuidado que a artista paulista teve com a interpretação do texto, com a afinação, com os arranjos, com a construção da cena musical, com a performance como um todo, exigiu do público (reporto-me aos ouvintes mais atentos) muito mais do que uma entrega emocional.  Todo aquele universo artístico exigiu também do interlocutor uma contemplação intelectual, uma escuta aprofundada. Isso se pensarmos numa comunicação artística mais ampliada e não unicamente no impacto primeiro que o discurso musical provoca em nossa sensibilidade.

Um dos elementos marcantes do trabalho de Zizi é exatamente essa tensão entre o emocional e o cerebral. Há nela um desejo de agradar o público, mas sem cair na banalidade e na emoção fácil. De uma forma geral, ela canta um repertório de difícil execução para os padrões da música popular. Em seu cancioneiro, a mezzo-soprano nos brindou, por exemplo, com obras de Chico Buarque, Tom Jobim, Gilberto Gil, João Bosco, Caetano Veloso, Gonzaguinha, Arnaldo Antunes, dentre outros cancionistas do mesmo calibre.

Mário de Andrade, em seus ensaios reveladores, costumava falar em “música interessada” e “música desinteressada”. Em termos gerais, a primeira categoria se referia às composições feitas para o público dançar e se divertir, sem preocupações intelectuais. A segunda se referia às composições elaboradas para serem escutadas a partir de uma contemplação intelectualizada, como se notava na tradição musical europeia. No universo da música popular brasileira urbana, parece que estas fronteiras se diluem, pois temos uma música popular que é muito rica no aspecto rítmico (ou seja, é sensorial e dançante), mas que também possui uma qualidade musical e literária que não se pode dizer que sejam produzidas apenas para o consumo rápido. Como dizia José Miguel Wisnik, a canção popular brasileira se tornou “um modo de pensar, uma das formas de riflessione brasiliana”. É claro que essas observações não se aplicam a todos os cancionistas, mas apenas ao time formado por craques como Chico Buarque, Gilberto Gil, Edu Lobo, Djavan, Caetano Veloso, Dorival Caymmi, Noel Rosa, entre outros. Não me parece à toa que alguns desses artistas estejam sempre presentes no repertório de Zizi Possi. Ela tem plena consciência do jogo que existe entre a audição analítica e a fisicalidade da canção (a capacidade de incitar a emoção e o movimento do corpo).

A musicalidade de Zizi Possi, próxima dos 60 anos de idade, impressiona. Ela deixa de lado as interpretações auto-elogiosas – aquelas em que a vocalista se põe acima da canção interpretada, como algumas vezes fizera grandes nomes da MPB como Elis Regina – para elaborar uma performance musical mais depurada, a partir de uma íntima ligação com o conteúdo da letra poética. Seu canto busca um equilíbrio e uma clareza apolíneos, por isso ela não abusa dos recursos vocais, embora os domine muito bem. Ela segue a linha de intérpretes como João Gilberto, não no sentido de se pautar pelo “canto falado” bossa-novista. No sentido de descobrir várias canções dentro de uma mesma canção e deixar delas apenas o que é essencial.

Basta pensarmos em músicas como “Meu erro”, dos Paralamas do Sucesso, e “Corsário”, de João Bosco e Aldir Blanc, para vermos como a artista nos mostrou outros modos de escutá-las. Tenho a impressão de que, ao ouvirmos a gravação original dos Paralamas, não damos a atenção devida ao conteúdo dramático da letra, isso porque o ritmo vigoroso do ska escamoteia a tensão amorosa do sujeito lírico (Eu quis dizer/ Você não quis escutar/ Agora não peça / Não me faça promessas). Zizi explora os elementos passionais do texto que estavam latentes, deixando se descortinar, por trás da original, uma outra canção: mais pesada, profunda e melancólica. Em uma entrevista dada ao programa de TV “De frente com Gabi”, em 2012, a vocalista falou de sua tendência em tornar as peças musicais mais melancólicas, o que se relacionava estreitamente com sua própria personalidade.

Na obra “Corsário”, Zizi nos revela, de forma clara e bem articulada, o forte acento ibérico da letra de Aldir Blanc e da música de João Bosco (Meu coração tropical/ está coberto de neve/ Mas ferve em seu cofre gelado/ E a mão vibra e escreve mar/ bendita lâmina grave que fere a parede e traz/ as febres loucas e breves que mancham o silêncio e o cais). Por meio do primoroso arranjo de seu pianista, da rearmonização e de sua interpretação repleta de ousadias rítmicas e melódicas, conseguimos deslindar determinados aspectos músico-literários de “Corsário” que pareciam estar “coberto de neve”, como o lirismo nostálgico próprio da tradição lusitana.

É válido dizer que todo esse artesanato musical brota de um rigoroso trabalho com o texto e com o material melódico das obras interpretadas. Para mim, está claro que a cantora entende que a dimensão literária da canção ocupa um lugar central na construção de sentido do discurso musical, portanto não pode ser delegada a um segundo plano. Esse fato me faz lembrar a teoria de Luiz Tatit que, em suas pesquisas de semiótica, nos mostrou que os efeitos de sentidos da canção são gerados a partir da articulação entre elementos prosódicos e musicais. Isto é, o sentido de uma música cantada só pode ser percebido de forma orgânica quando examinamos o malabarismo que há, principalmente, entre texto e melodia. Malabarismo é o termo correto mesmo, pois o autor de Semiótica da canção compara o cancionista com um malabarista, já que a ele cabe a difícil e encantadora tarefa de manipular com destreza as palavras e os sons musicais. E para que a canção se materialize, é fundamental a existência de um intérprete, que não deixa de ser igualmente um criador.

Essa breve incursão na teoria de Luiz Tatit servirá para dizer que Zizi Possi possui uma consciência muito aguda de todo esse processo de composição da música popular. A longa convivência com textos poéticos – alguns inclusive são recitados com frequência em seus shows – fez com que ela adquirisse uma capacidade de fixar, por meio de suas interpretações, novas possibilidades de leituras de canções já consagradas. Desse modo, o requintado tratamento que ela dá à palavra e à música faz com que se engendrem efeitos de sentidos originais. Não seria exagero dizer que ela não apenas canta (no sentido restrito do termo), mas assume, verdadeiramente, diferentes papéis e vozes dramáticas. A pujante interpretação de “Pedaço de mim” (Chico Buarque) é, nesse sentido, exemplar: nela a cantora encarna o papel da mãe que perde o filho e se desespera. Canta como se estivesse, de fato, no palco da peça “Ópera do Malandro”, de onde a canção foi colhida.

Quando penso na notável carreira da cantora paulista, acredito piamente que o sucesso dela é resultado de um trabalho árduo e não exclusivamente de seu talento. Percebemos que sua técnica vocal é estruturada a partir de elementos do canto lírico (ela tem uma ligação forte com a música italiana, até mesmo pela sua descendência), do canto popular brasileiro, além de recursos como o belting, que é uma técnica de projeção vocal amplamente utilizada no teatro musical norte-americano. A convivência com múltiplas técnicas exige do músico uma enorme dedicação, um estudo meticuloso dos componentes que estruturam a arte musical. Vale lembrar que Zizi Possi cursou, por algum tempo, “Composição e Regência” na Universidade Federal da Bahia, uma das melhores do Brasil nessa área.

Outro ponto forte da intérprete é o seu minucioso rendilhado com a dinâmica musical. Ela atinge um nível de execução muito alto, principalmente no que se refere aos contrastes de intensidade, ao crescendo e ao decrescendo. Sua voz quando chega a regiões muito agudas – ao invés de se criar uma tensão, que é própria do fraseado mais alto – ela flutua numa leveza impressionante. Por isso, nunca é est­­­ridente, irritante. Algumas vezes é palavra viva, outras vezes puro som musical. Além de todos esses elementos, não poderíamos deixar de notar sua espontaneidade no palco, sua rigorosa escolha do repertório, sua capacidade de cantar com boa pronúncia em diversos idiomas, o seu figurino sempre ­­­adequado e sua cena musical bem elaborada. É evidente que há por trás de toda essa beleza a regência artística de seu irmão, o teatrólogo José Possi Neto, produtor da cantora há muitas décadas.

E o que dizer do trabalho do pianista, clarinetista e maestro Jether Garotti Júnior? Um músico admirável, que forma uma parceria com a mezzo-soprano que já ultrapassa os 20 anos. Sua concepção de acompanhamento pianístico, tema de sua dissertação de Mestrado pela UNICAMP, extrapola as noções tradicionais, pois ele acrescenta diversas camadas de sentido às interpretações de Zizi Possi, ao invés de tão somente realizar a condução rítmico-harmônica. Em Teresina, o maestro trouxe teclados, mas ele costuma utilizar o piano de cauda, o que dá para as apresentações uma fisionomia de recital clássico (mostrando, mais uma vez, que o trabalho da intérprete está permeado por uma estética que valoriza componentes da tradição erudita). Os teclados de Jether Júnior participam de maneira decisiva no efeito geral produzido pela canção. São, na verdade, parte indissociável delas. Isto porque ele compreende o acompanhamento como algo inventivo e não apenas como um acessório do canto. Por meio de pedais de expressão e do uso de samplers, o maestro faz com que seus teclados tenham uma gama de dinâmicas e texturas próprias de um piano acústico. É notória a sincronia de seu instrumento com os crescendo e decrescendo, com os melismas, com os glissandos, com os contrastes entre forte e fraco, com o acelerando e o ralentando, com as flutuações da voz da mezzo-soprano.

Ao projetar as primeiras notas no palco do “Teatro 4 de Setembro”, Zizi Possi me fez repensar a maneira, muitas vezes rápida e superficial, que apreciamos a música popular. E tenho a consciência de que essa arte é, sem dúvida, uma das formas mais poderosas de compreender a cultura brasileira. É o nosso produto cultural por excelência, o que fez Caetano Veloso dizer, em tom de ironia: “Se você tem uma ideia incrível/ É melhor fazer uma canção /Está provado que só é possível /Filosofar em alemão”.

O historiador Marcos Napolitano estava correto ao afirmar que a música popular no Brasil é “um lugar de mediações, fusões, encontros de diversas etnias, classes e regiões”. Porém, não se pode negar que, no contexto atual, a maior parte das canções populares divulgadas nos meios de comunicação está longe de desempenhar o papel que já teve em décadas passadas. Em sua maioria, elas são inexpressivas, frívolas e feitas simplesmente para o consumo apressado. Por isso, não é uma tarefa das mais fáceis encontrar trabalhos musicais como o de Zizi Possi, que se mostra, ao mesmo tempo, comunicativo e denso.

Para além do entusiasmo que provocou no público e do inegável efeito catártico próprio do canto, o show da cantora paulista foi, para mim, uma espécie de exercício cognitivo, um convite à reflexão. E mais que isso: foi um daqueles raros momentos de epifania em que a canção nos “toma sem pensar, num gesto muito forte, com a mais pura emoção”.

sábado, 13 de fevereiro de 2016

O Regresso (2016), de Alejandro Gonzáles Iñárritu



O regresso de Alejandro Gonzáles Iñárritu

(por Alfredo Werney)

Não fosse pelo nome que aparece nos créditos da película, nem desconfiaríamos que O Regresso (“The Revenant”, 2016) é uma obra dirigida pelo mexicano Alejandro Gonzáles Iñárritu. Vencedor do “Oscar” (2015) com Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância) e autor de importantes filmes artísticos como Amores brutos (2000), 21 gramas (2003) e Babel (2006), o cineasta parece ter mudado completamente a sua maneira de pensar a arte cinematográfica. Parece, de fato, ter renunciado ao seu estilo (referimo-nos àquele da trilogia roteirizada por Guilhermo Arriaga), cheio de invenção e de imaginação criadora, para se encaixar no esquema das grandes produções “épicas” hollywoodianas.
 
De qualquer forma, não podemos dizer que Iñárritu é um diretor principiante. Nem de longe. O Regresso impressiona pela sua beleza plástica, pelo cuidado de sua fotografia (Emmanuel Lubezki, o premiado cinematographer, explora com mestria as luzes naturais do ambiente), pela atuação de alguns atores (Tom Hardy melhor que Leonardo DiCaprio, isso pelo seu tom mais espontâneo e seu gestual mais depurado), pela paisagem sonora dos sugestivos teclados de Ryuichi Sakamoto. O problema é que tudo para nesse primeiro impacto que recebemos. Aliás, o filme é todo impacto! Qualquer esforço interpretativo que procure um caminho mais aprofundado e reflexivo, vai esbarrar no puro tecnicismo e na "pirotecnia" visual da obra.

As cenas iniciais, em que vemos um combate entre os índios norte-americanos e os homens brancos caçadores de pele, já percebemos que se trata de um filme violento, dramático e grandiloquente. O discurso fílmico está inebriado de toda essa estética que, em raros momentos, silencia. No geral, há um verdadeiro dilúvio de imagens e de sons que, de tão intenso, vai, gradativamente, perdendo a força quando chega ao clímax narrativo: a tão esperada vingança de Hugh Glass.

O filme, que é baseado no romance homônimo do escritor Michael Punke, possui uma narrativa bastante solar: um caçador de peles, Glass (Leonardo DiCaprio), após ser atacado ferozmente por um urso, é abandonado por parte de seus companheiros. Para piorar ainda mais a situação, o seu filho é assassinado, em sua presença, pelo ganancioso John Fitzgerald (Tom Hardy), um dos homens de seu grupo. Glass sobrevive aos ferimentos graves, por meio de sua bravura e da ajuda de um índio que ele encontrara alimentando-se de carne crua na selva tenebrosa. Inicia-se, então, uma árdua jornada em busca de vingança contra Fitzgerald. Nessa peregrinação, Glass passa por todas as provas de sobrevivências possíveis para um ser humano, tais como: comer carne crua, dormir em meio a nevascas, cair de altíssimos penhascos e sofrer constantes ataques de índios.

Não há como negar que o filme possui firmeza em sua direção e em sua narrativa, apesar de sentirmos que o ritmo da montagem se torna um tanto quanto arrastado – se pensarmos na fluência rítmica sugerida pela obra desde as primeiras tomadas – nos momentos em que Glass, desamparado na floresta, tenta sobreviver. Além do que, há cenas, como a do ataque do urso, que são plasticamente muito bonitas e impactantes, não só pelo labor da montagem, como também pela sua engenhosa construção sonora. O autor também acerta no uso dos travelling, dos planos-sequencia, dos mergulhos de câmera por entre as árvores da selva. Às vezes, a câmera nos dá a sensação de que estamos, de fato, ali no meio daquela batalha sangrenta. A música do trilhista japonês Sakamoto, por sua vez, é inventiva e nunca suplanta a imagem. Ela se desvencilha dos lugares-comuns presentes em boa parte dos filmes americanos em que há conflito entre brancos e indígenas. Isto porque propõe a construção de uma paisagem sonora diferente da que ouvimos nos faroestes tradicionais e nos filmes de aventura. O músico explora a sonoridade dos seus teclados e de instrumentos de percussão, ao invés das conhecidas flautas de pã (para representar os “inimigos” indígenas) e do discurso musical dramático das grandes orquestras sinfônicas. A linguagem musical do compositor japonês possui uma textura menos densa e tende para uma estética mais eletrônica.

Porém, há problemas visíveis na película: o roteiro está povoado de clichês, de falas repetitivas e prontas, em sua maioria reforçando a ideia de coragem e luta; a interpretação de Leonardo DiCaprio (embora tenha sido aclamada quase que unanimemente pela crítica) é pesada e excessivamente dramática; a montagem está repleta de flashbacks piegas, explicativos e, quiçá, desnecessários; a opção por um realismo cru e violento termina por não abrir espaço para gratuidades poéticas, tampouco para a imaginação do interlocutor – este condenado a passar horas e horas, juntamente com Glass, vivendo um calvário interminável.

É notório, para os que acompanham a trajetória do cineasta mexicano (uma trajetória, diga-se, de grande êxito), o fato de ele pesar bastante a mão ao “pintar suas telas expressionistas” – problema este muito evidente em Biutiful (2010) e, agora, nesse seu derradeiro trabalho. O Regresso é uma obra profundamente amarrada ao roteiro, a uma explicação causal. Não possui tensão estilística (no sentido de não haver contraponto na articulação dos elementos que compõe o discurso cinematográfico). É um trabalho que não instiga nossa percepção, porque já traz tudo pronto, e em demasia.

O escritor argentino Jorge Luis Borges dizia, em Esse ofício do verso, que “qualquer coisa sugerida é bem mais eficaz do que qualquer coisa apregoada”. Se o enunciado de Borges valer para as outras artes e não só para poesia, poderíamos dizer que no cinema, a sugestão de um evento, muitas vezes, é mais forte (e melhor) visualmente do que ele próprio. É o que faz, por exemplo, Hitchcock na clássica sequencia do esfaqueamento de Marion Crane, em Psicose (1960). A montagem dos planos, os cortes visuais e as arcadas agressivas das cordas da trilha musical de Bernard Hermann são suficientes para nos transmitir pavor e brutalidade, embora não vejamos realmente a faca penetrar no corpo da personagem. O hiper-realismo de O Regresso anda em um caminho contrário: a violência é tão intensa e visível que, aos poucos, deixamos de percebê-la.

Alejandro Iñárritu nos mostra que, decisivamente, não quis dar continuidade ao seu projeto estilístico, de certa maneira ousado, que se traçou desde Amores Brutos (por sinal, vencedor do Prêmio da Crítica no “Festival de Cannes”). Mas deve haver ainda muitos admiradores de sua obra fílmica que guardam na memória a força sonoro-visual e o radicalismo estético de Amores perros; o silêncio, o lirismo e a espontaneidade poética de muitas sequencias de Babel; a rica e expressiva montagem de 21 gramas – que não visa simplesmente explicar as tramas narrativas, mas provocar uma tensão poética entre os elementos do discurso cinematográfico. A estes interlocutores, o universo estético de O Regresso certamente não interessará muito. A despeito de sua grandiosa produção, de seu empenho e preciosismo técnico, The Revenant não é mais que um filme de vingança, subordinado à desgastada gramática hollywoodiana.