UM PAÍS SEM PÉ NEM CABEÇA
(Sobre os massacres nas prisões
brasileiras)
Ainda hoje me lembro de um artigo, que li numas dessas revistas de
curiosidades científicas, que tratava da existência de um sinistro treinamento
militar na China, milhares de anos antes de Cristo. Neste treinamento se
praticava um jogo (o tsu-chu) ligeiramente semelhante ao futebol,
que era jogado com cabeças humanas, como forma de ultrajar soldados inimigos e
comemorar batalhas vencidas. Tempos depois, fiquei sabendo também que, na Idade
Média, adultos e crianças arrumavam-se, como quem vai para uma quermesse, para
testemunhar atrocidades, como enforcamentos em praças públicas e pessoas sendo
torradas em enormes fogueiras. Essas informações, mais do que meras
curiosidades, serviram para me mostrar que a violência sempre existiu, e que o
ser humano sempre olhou para ela como quem assiste a um grandioso espetáculo
operístico.
Aonde
eu quero chegar com esse pequeno introito? No massacre ocorrido nas
penitenciárias de Manaus e de Roraima, no mês de janeiro do corrente ano. Em um
dos vídeos postados pelos presos na internet, vemos, de forma vertiginosa, uma
espécie de futebol macabro jogado com a cabeça de um preso de uma facção
inimiga. A cena é de uma violência tão mórbida e gratuita que comoveria até
mesmo o coração de Vlad Tepes, o Empalador. Na mesma hora associei a cena ao
que eu havia lido muitos anos atrás na referida revista, o que só me fez
confirmar que a crueldade, em todas as épocas, é uma companheira inseparável da
experiência humana.
Mas o que me chama mais a atenção nessa situação toda é a
impressionante euforia com que alguns indivíduos comemoram, sobretudo nas redes
sociais, o banho de sangue ocorrido nos estados de Manaus e de Roraima. Às
vezes, desconfio que aqueles que soltaram pombinhas da paz no Natal e foram
tocados pelo espírito do nascimento de Cristo, talvez tenham sido os mesmos que
iniciaram 2017 se deliciando com o horrendo quadro cubista formado por pernas e
braços humanos que rolaram pelos becos escuros e imundos daquelas masmorras
medievais.
Para esses cavaleiros medievos – com suas espadas em riste e
embebidos pelo discurso populista, simplista e imoral do excelentíssimo
espadachim Jair Bolsonaro, que já afirmou em público que desejava que matassem
mais 200.000 vagabundos – o problema da violência são as pessoas que defendem
os direitos humanos. Como se tais pessoas estivessem aplaudindo, ingenuamente,
a bandidagem e a impunidade, quando, na verdade, elas estão propondo, de forma
séria e racional, uma maneira eficaz de se construir uma sociedade mais justa e
harmoniosa.
As estatísticas em relação ao sistema prisional brasileiro são
estarrecedoras: o Brasil possui a quarta maior população carcerária do mundo e
o número de presos dobrou nos últimos 10 anos (já são mais de 600.000),
enquanto países como a Suécia e a Holanda diminuem continuamente o número de
penitenciárias (Só no ano de 2012 a Holanda fechou 8). Isso significa dizer que
o sistema prisional brasileiro prende muito, mas é ineficiente, pois o índice
de violência só tem aumentado nas cidades e a reincidência do detento no mundo
do crime é um fato quase certo. É bom dizer que não se trata de mais um
capítulo do repisado debate entre esquerda e direita. Todos nós – sejamos
comunistas, esquerdistas, direitistas, elitistas, liberais, ateus ou cristãos –
devemos estar atentos para o fato de que, realmente, estamos perdendo a luta
para o crime organizado. E, não há como negar, é notório que também somos
fortemente atingidos por seus desdobramentos...
Não sou ingênuo e sei que muitos dos bandidos que promoveram aquele
morticínio desenfreado, seguramente, não conseguirão mais se reintegrar à
sociedade. Na realidade, o erro já começou antes de eles serem amontoados
naqueles celeiros sórdidos. Em verdade, não quero proclamar aqui a natureza boa do
ser humano e tirar a culpa dos que cometem crimes bárbaros, dizendo que tudo
depende das contingências sociais e históricas nas quais o indivíduo está
inserido. Não é tão simples assim! Freud dizia, em O mal-estar na
cultura, que, mesmo que todas as pessoas vivessem em condições sociais
iguais, ainda assim teríamos graves problemas e a sociedade não deixaria de ser
agressiva (não é exatamente assim que ele diz, mas o sentido é esse). Ele
estava certo, acredito.
Lembremos, entretanto, de que havia gente presa em Manaus e Roraima
por pequenos furtos e que a maior parte dos que foram trucidados não estavam
detidos por assassinato e nem tinham sido julgados. E o que dizer sobre o
perfil dos encarcerados nos calabouços brasileiros? Mais de 60% são pretos,
pobres e não conseguiram terminar o ensino fundamental. É difícil acreditar, de
fato, que o sujeito que esfaqueia e separa a cabeça do corpo de uma pessoa –
tal como se faz ao comer um camarão na praia – possa ser reintegrado ao mundo
social. Porém, não dá para colocar todo mundo no mesmo saco. Há presos
provisórios que não são, a princípio, de facções criminosas e só entram nelas
de uma forma obrigatória. Em 2015, mais de 39% da população carcerária do
Brasil era provisória. No Piauí, há o caso de um detento que ficou quase 2 anos
presos em regime fechado, sem ser julgado, por ter roubado 200,00 de um
comércio (dados do portal G1). Sinceramente, quem furta uma joia não pode
ser colocado lado a lado com um integrante da FDN e do PCC com 10 anos de
carreira. Sabemos que, em grande parte, essas facções são arquitetadas dentro
dos próprios presídios. E a solução, nem de longe, é o extermínio
indiscriminado.
Vale ainda lembrar que, por pouco, não se tornaram igualmente vítimas os
presos em regime semiaberto, que estavam improvisados na Cadeia
Pública Vidal Pessoa, no centro de Manaus – onde se confirmou 5
assassinatos. É que estes foram liberados temporariamente pelos gestores de
segurança pública, por conta da falta de estrutura do prédio. Os que estão em regime
semiaberto respondem por crimes como não pagamento de pensão, depredação do
patrimônio público ou pequenos furtos. Devemos verdadeiramente indagar aos que
são favoráveis a essa batalha sangrenta: será que o sujeito que não pagou uma
pensão alimentícia ou que furtou um pacote de biscoito num supermercado tem que
ser punido de forma justa como manda a lei ou deve ser desossado como um frango
e esquartejado como o carneiro do poema de Augusto dos Anjos?
Não dá para aceitar a simplória e impensada equação propalada
pelos justiceiros (que se autoproclamam “cidadãos de bem”, mas, muitas vezes,
são pessoas corruptas na vida cotidiana, ou sustentáculos do tráfico e do
comércio de armas porque usuários de cocaína e de outros entorpecentes, ou até
mesmo violentas no ambiente familiar): quanto mais bandidos morrerem,
mais a sociedade ficará limpa e segura. Não nos enganemos: os fogueteiros
de hoje que estão servindo de bucha de canhão nas favelas, ainda com seus 10
anos de idade, “se tudo der certo”, serão os Marcola e os Beira-mar de amanhã.
É evidente que esses bandidos bucha-de-canhão que vão para o xilindró – e devem
ir mesmo, só que de uma forma diferente – são apenas uma pequena peça do
gigantesco e complexo quebra-cabeça da violência urbana e do narcotráfico.
Também não vamos achar, de forma pueril, que quanto mais se violentar um
indivíduo, mais ele se arrependerá de seus crimes. É exatamente o contrário:
quanto mais acossado, mais ele responderá com agressividade.
O teatrólogo Augusto Boal dizia, em entrevista, que o problema do Brasil
não é de diagnóstico, pois todos nós sabemos por que esse país não funciona. O
diagnóstico sobre esse momento que enfrentamos é, de fato, demasiado óbvio: falta de
investimento na educação, sucateamento e superlotação dos presídios (no caso do
Complexo Prisional "Anísio Jobim", em Manaus, o número de presos era
quase três vezes mais do que a capacidade), desorganização do estado e
organização do crime, falta de um debate claro e inteligente sobre o problema
do tráfico de drogas, desestruturação da polícia, péssima distribuição de
renda, corrupção na política e na vida cotidiana do brasileiro, etc, etc, etc.
Realmente, nesse país “sem pé nem cabeça”, onde as ideias estão fora de lugar e
a corrupção se transformou num câncer em estado de metástase, ao invés de
arrolarmos os problemas, devemos é começar a agir com inteligência e
honestidade, a sociedade civil em parceria com o Estado. O mundo do crime tem que deixar de ser um mundo lucrativo e sedutor.
O fato é que cada morte desse genocídio medieval, que chegou ao
espantoso número de 100 pessoas e que pode se multiplicar ainda mais, não dá
para explicar apenas pela ótica do senso comum, que diz que uns nascem mesmo
criminosos e a solução é fazer uma “limpeza geral”. Todo esse cenário de guerra
civil é produto de uma enorme falha social, é a prova cabal da falência
do Estado, é um sintoma da desorganização e da negligência de um sistema
político corrupto, é o descaso de todos nós brasileiros com nossa aldeia e com
nossa vida em sociedade. Não foi somente um acidente, como mencionou o
presidente Michel Temer, mas sim a crônica de uma morte anunciada!
Na verdade só estou dizendo o “óbvio ululante”, tomando de empréstimo a
famosa expressão de Nélson Rodrigues, mas é preciso que repitamos milhares de
vezes, alto e bom som: não podemos mais, vestidos de uma frágil máscara de
“cidadãos de bem”, aplaudir a matança e incitar a violência diária (“sangue
chama sangue”, como está anunciado em Macbeth, de Shakespeare),
como se não tivéssemos nada a ver com as mazelas desse país. Estou certo de que
nesse massacre morreram muito mais do que 100 pessoas. Cada um de nós,
brasileiros, matou e morreu um pouco ali também...
(Paulo
Andrade de Lima - professor e escritor)