sexta-feira, 16 de março de 2012

MÚSICA DO CINEMA


Um passe além da linha*

(Alfredo Werney)


            Não seria exagero afirmar que a música nos filmes brasileiros geralmente é concebida apenas como “algo que se acrescenta ao filme para torná-lo mais bonito e mais fácil de ser digerido”. Mas é bom que lembremos: nem sempre as coisas funcionam dessa maneira e este fator é de grande importância para a cinematografia brasileira. Algumas películas têm, de fato, a preocupação com a construção musical, assim como a construção da camada visual. Poderíamos incluir nestas obras, Linha de passe (2008, direção de Walter Salles e Daniela Thomas), musicada pelo compositor argentino Gustavo Santaolalla.

            Em Linha de passe, a música de Santaolalla atua como uma espécie de contraponto: nos momentos de maior intensidade e de movimentação dos planos visuais, sua composição permanece com um tom grave e psicodélico, praticamente sem nenhuma atividade rítmica. Gustavo parece nos querer dizer que por trás de toda a euforia (dos evangélicos, das partidas de futebol, da trajetória do ônibus coletivo nas ruas de São Paulo, das peripécias da motocicleta) há certa melancolia, um silêncio no interior de cada um dos membros daquela família da periferia de São Paulo.

            A trilha musical dessa película de Walter Salles e Daniela Thomas possivelmente é uma das composições de Santaolla  mais ligadas ao plano psicológico, emocional. A música, em muitas cenas, parece expressar não o que está contido na montagem, na fotografia, nos diálogos, mas sim o que está  na psique dos personagens.  Poucas são as marcações de música e, além do mais, algumas delas se repetem constantemente.  São composições  circulares como as voltas do ônibus, como os dribles de  Dario, como  a própria existência cotidiana de cada uma das pessoas.

            É oportuno dizer que, ao falarmos de “música psicológica”, não estamos nos reportando àquelas intervenções musicais que visam apenas reforçar, de maneira pleonástica, as emoções vividas pelos personagens, como se observa na trilha musical de Olga (direção de Jaime Monjardim e música de Marcus Vianna). O compositor latino não coloca música com excesso de dramatismo (como os conhecidos clichês de melodias agudas e tensas do violino e da flauta) em uma cena que, por si, já se nos revela “dramática”.

            O que fica em nossas impressões é que a música de Gustavo almeja equilibrar as tensões da vida enfrentada por Cleuza (premiada no “Festival de Cannes” como melhor atriz) e seus filhos, em um espaço de difícil sobrevivência e de pouca afetividade. G. A. Santaolalla suaviza, com sua sonoridade que tende ao abstrato, a dureza da existência na frenética cidade de São Paulo. Observemos que há, nessa postura, uma leitura não muito usual.  De um modo geral, utiliza-se uma “enxurrada” de sons eletrônicos, de raps, guitarras distorcidas para se representar o caos paulista. Em Linha de passe – tal qual na trilha musical de Ed Cortêz para o filme Não por acaso, de Philippe Barcinski – o compositor conseguiu desconstruir alguns clichês. Conseguiu ultrapassar as quatro linhas e explorar novas dimensões do campo.  É importante lembrarmos que as referências etnomusicológicas de Santaolalla são diferentes  daquelas  do  cenário musical brasileiro. O fato de o compositor não ser  do Brasil e ter pouca convivência com nossa música, acreditamos, fez com que ele produzisse uma trilha de caráter mais universal. Desse modo, existem na banda sonora de Linha de passe menos elementos reveladores da nossa paisagem musical, mas que são coerentes com a concepção artística do filme.

            As últimas sequencias do filme são momentos extremos para cada personagem. São instantes repletos de uma intensa poesia visual. Através de uma montagem de ações paralelas, Walter Salles e Daniele Thomas nos mostram tais momentos: a penalidade máxima a ser cobrada por Dario, o ônibus nas mãos do pequeno Reginaldo que sonha encontrar o pai, o desfecho de um assalto realizado por Dênis, a busca da cura pela religiosidade nos batismos realizado por Dinho, as fortes dores da gestação enfrentadas por Cleuza. A música do filme surpreende pelo fato de continuar com seu discurso mais apolíneo, sem drama e sem exageros. O compositor argentino parece, com efeito, não querer afirmar algo (de forma veemente) com sua música. Sua composição, desse modo, não é conclusiva do ponto de vista do encadeamento harmônico. Análoga ao próprio final da película, ela é aberta e aponta para várias direções, como em outros trabalhos musicais de sua autoria (Babel, Amores perros).

            O estilo composicional presente no filme de Walter Sales e Daniele Thomas é, sem dúvida, pouco encontrado nas obras cinematográficas brasileiras – estas mais voltadas para o uso das canções populares como “pano de fundo”. Por isso, a escolha de Gustavo Santaolalla para compor a trilha musical foi muito adequada e feliz. Com efeito, o argentino conseguiu se   desvencilhar das amarras e das convenções tonais e melódicas da maioria das trilhas e deu um passe além da linha.

      


* Este texto faz parte do ensaio "Na trilha de Gustavo Santaolalla". disponível em    http://www.desenredos.com.br/   

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