DIÁLOGOS ENTRE CINEMA E LITERATURA: A
TRADUÇÃO ISOTÓPICA DE VIDAS SECAS
Alfredo Werney*
1- PLANO
GERAL
A
literatura brasileira despertou e ainda desperta a atenção de muitos de nossos
cineastas, sobretudo daqueles que não defendem, com veemência, o purismo da
linguagem cinematográfica. Diversas obras que foram basilares para a formação da
literatura nacional – como Macunaíma,
Menino de engenho, A hora e a vez de
Augusto Matraga, Memórias Póstumas de Brás Cubas, A terceira margem do rio – transformaram-se
em filmes de igual importância para o desenvolvimento do cinema em nosso
país.
Não
há como negar que as películas de Nelson Pereira dos Santos que se basearam na
obra Graciliano Ramos – a saber, Vidas
Secas (1963) e Memória do Cárcere (1984) – estão inclusas nas parcerias mais bem
realizadas entre artistas brasileiros. Graciliano, escritor consolidado da literatura
brasileira moderna, inaugura uma visão de sertão mais crítica e
dialética em nossa tradição romanesca. Desvencilhando-se dos recorrentes clichês
da visão pitoresca dos regionalistas típicos e do naturalismo da escrita
realista, o autor alagoano empreende em sua obra uma visão de mundo mais
polifônica, em que as personagens não são apenas porta-vozes de uma determinada
ideologia do autor. Como nos mostrou Alfredo Bosi (1981), os romancistas de 30
procuraram navegar pelas discussões de cunho social e histórico e, dessa forma,
romperam com o realismo do século XIX, impessoal e demasiado científico.
Dentre
as obras cinematográficas que procuraram traduzir o universo de signos verbais de
Graciliano em imagens e sons, podemos destacar Vidas Secas. Indubitavelmente, uma das realizações cinematográficas
que mais deram notoriedade ao trabalho de Nelson Pereira. O cineasta paulista,
desde a sua importante película Rio, 40 graus já demonstrava o seu veio neorrealista, através de uma linguagem mais
direta e sem elementos desnecessários para a
compreensão da narrativa, da pesquisa estética do cotidiano do brasileiro e do
registro documental da realidade social e histórica.
O
filme Vidas secas é considerado uma
matriz para outras obras do cinema brasileiro. Sua linguagem, que questiona a
decupagem clássica e se preocupa com uma estética que represente as
contradições e os problemas sociais do Brasil, é repleta de inventividade e é avessa aos
lugares-comuns presente em muitas obras do cinema narrativo hollywoodiano. O
cinema novo, com Glauber Rocha como o grande maestro desta corrente estética,
sempre delegou a Nelson Pereira um papel
fundamental na construção da linguagem do cinema moderno brasileiro.
Podemos
dizer que os projetos artísticos de Nelson Pereira e de Graciliano se afinam em
diversos pontos, visto que se trata de artistas que procuraram interpretar o
Brasil de uma maneira mais realista e dialética, através de uma estética que
não apela para o pitoresco e que não se utiliza de um discurso grandiloquente. A
depuração da linguagem, a apresentação da realidade cotidiana sem as marcas de
uma imaginação transbordante, a construção de personagens comuns e sem
heroísmos são pontos em comum na obra do escritor e do cineasta.
A
análise do filme Vidas Secas se torna
mais complexa e instigante pelo fato de não se tratar de uma mera adaptação,
mas de uma obra que problematiza a estética do cinema clássico e propõe uma
visão inovadora de cinema brasileiro. A partir do conceito de isotopia, presente na semiótica
greimasiana e da idéia de tradução
intersemiótica, de Roman Jakobson (posteriormente desenvolvida por Julio
Plaza), pretendemos desenvolver uma breve análise do filme Vidas secas. Nosso enfoque é no processo de construção de sentido
da obra cinematográfica. Interessa-nos, portanto, saber como os elementos da linguagem
cinematográfica estão estruturados e como o cineasta os utilizou para realizar
a transmutação de sentidos do sistema de signos verbal para o sistema visual/sonoro.
2- ENTRE PLANOS: A RELAÇÃO ENTRE CINEMA E
LITERATURA E O PROBLEMA DA TRADUÇÃO
“No cinema, ler filmes. E em casa, assistir a livros. Inversões?
Não. Apenas uma realidade que nasce naturalmente, quando nos deparamos com
adaptações da literatura em superproduções cinematográficas”.
(Cácio Xavier Pereira).
Muito se discute sobre as relações
existentes entre o cinema e a literatura e não há como negar a contaminação de
sentidos que uma arte efetua na outra no contexto atual. Porém, as discussões que
envolvem signos verbais e signos audiovisuais, em sua maioria, não ultrapassam
a idéia de “fidelidade” e “infidelidade” ao texto original. Não é raro ouvirmos,
quando se trata de filmes baseados em obras da literatura: “Gostei mais do
livro. O filme não é fiel à obra literária!”. É importante superarmos o
conceito de adaptação como um processo de transposição meramente técnico e sem
inventividade, para que possamos compreender melhor as relações entre essas
duas linguagens artísticas.
O cinema, como apontam os estudos
que se centram na imanência da linguagem fílmica, possui uma gramática própria.
E diga-se: uma gramática independente da verbal. Se fizermos um paralelo entre
o plano da expressão de um filme e o plano da expressão de um texto escrito, veremos
que há muitas diferenças materiais entre eles. No cinema, a palavra se converte
em planos, cortes, montagem, trilha sonora, luz, cenário, além de outros
componentes fílmicos. Dessa forma, não podemos exigir de um cineasta que
transponha para a tela todas as situações e traços estilísticos de uma obra
literária, uma vez que o cineasta tem em suas mãos uma matéria de expressão bem
diferente da linguagem verbal. Entretanto, é importante observarmos que há, tanto no cinema quanto na literatura (na verdade, na
linguagem das artes em geral), uma semelhança na
estruturação e na organização dos componentes de suas linguagens.
Acreditamos, portanto, que seja mais
coerente utilizarmos o conceito de “tradução intersemiótica” para nos
referirmos a uma obra literária que se transmutou em filme. Roman Jackobson, um
dos primeiros estudiosos a criar categorias para a tradução, define a “tradução
intersemiótica” como a interpretação de signos verbais em signos não-verbais
(como é o caso da transposição de uma obra escrita para a linguagem
audiovisual). Júlio Plaza (2001), em um estudo mais extenso e detalhado sobre o
problema da tradução, compreende este tipo de tradução como:
[...]
prática crítico-criativa na historicidade dos meios de produção e reprodução,
como leitura, como metacriação, como ação sobre estruturas, eventos, como
diálogo de signos, como síntese e reescritura da história. Quer dizer: como
pensamento em signos, como trânsito de sentidos, como transcriação de formas na
historicidade (p. 14).
O conceito de “adaptação para o
cinema” parece sobrepor o signo verbal ao audiovisual, delegando um papel
secundário à sétima arte. Trata-se de uma visão que não abarca as complexidades
críticas, históricas e criativas de que nos
fala Plaza. Quando falamos de “tradução intersemiótica”, não se trata,
portanto, apenas de uma questão de nomenclatura: o que se almeja é afirmar que todo
ato de traduzir é um processo de recriação, de expansão de significados. Recriar
pressupõe, dessa maneira, alargar as possibilidades de leitura da obra
literária, ao invés de tão-somente trazer para a tela uma narrativa
pré-existente.
Nelson Pereira, com toda sua
experiência na recriação de livros de nossa literatura, soube realizar um
trabalho repleto de inventividade ao traduzir para o cinema Vidas Secas. O cineasta não se conformou
em simplesmente criar uma narrativa que ilustrasse o livro, mas soube transportar
as diversas isotopias ali presentes. Dessa maneira,
há em sua obra o
desejo de expandir o horizonte de leitura da obra do escritor nordestino. Com
efeito, a película do cineasta de Tenda
dos milagres trata-se de um empreendimento estético de grande fôlego, pois
põe em discussão toda uma tradição cinematográfica que
está ligada à ideia de uma narrativa fílmica contínua e de forte apelo emocional,
sem rupturas e ousadias estéticas, como as representações naturalistas de algumas
produções de Hollywood.
3- CONEXÕES INTERSEMIÓTICAS: NEORREALISMO,
NELSON PEREIRA DOS SANTOS E O ROMANCE DE GRACILIANO RAMOS.
Não se pode afirmar que Nelson
Pereira dos Santos é, no rigor do termo, um cineasta do neorrealismo, mas é
inegável a influência desta corrente estética em seu cinema. Rio, 40 graus,
ao mostrar em uma linguagem simples e direta o cotidiano do Rio de Janeiro, é
um dos primeiros exemplos da influência do cinema italiano na obra do diretor
paulista. O Neorrealismo, movimento estético surgido na Itália do pós-guerra, procurou
construir um cinema que rompesse com o modelo de estúdio da cinematografia hollywoodiana
e pudesse fazer com que as pessoas refletissem, de forma mais intensa e
politizada, sobre os problemas sociais do seu país. Os filmes passaram a ser
produzidos nas ruas, a realidade passou a ser fixada sem muitas manipulações,
os personagens foram compostos de pessoas comuns, sem precisar recorrer às
estrelas do cinema mundial, pelo menos em grande parte das produções.
Os filmes neorrealistas
buscaram, dessa forma, um discurso mais depurado, avesso ao exagero retórico e
ao espírito grandioso presente em gêneros fílmicos como o romance. A ideia central
era valorizar cada momento da nossa realidade cotidiana, ao invés de extrair
ficção dela. “A realidade está lá. Por que
manipulá-la?” era uma das máximas de Roberto Rosselini, que influenciou toda
uma geração de cineastas no mundo todo (incluindo, evidentemente, nosso
cineasta de Vidas Secas). O “Cinema
novo” com sua “estética da fome”, proposta por Glauber Rocha, reorganizou
muitas ideias e técnicas do cinema italiano
pós-guerra para expressar sua indignação contra o cinema massificador e
acrítico. Além de tratar das questões políticas que envolvem o cinema, Glauber
Rocha, em sua estética da fome, toca na questão da literatura:
O que fez do Cinema Novo um fenômeno de importância
internacional foi justamente seu alto nível de compromisso com a verdade, foi
seu próprio miserabilismo, que, antes escrito pela literatura de 30, foi agora
fotografado pelo cinema de 60; e, se antes era escrito como denúncia social,
hoje passou a ser discutido como problema político. (p. 02).
Nelson Pereira
– que exerceu uma clara influência nas ideias do
autor de Deus e o diabo da terra do sol
– disse-nos, em entrevista, sobre o neorrealismo italiano: “foi o ponto de
partida, a gente descobriu que podia fazer cinema no Brasil sem estúdios
gigantescos, sem grandes capitais, com equipamento leve”.
Do ponto de vista da linguagem
cinematográfica, muitos métodos mudaram com o surgimento da estética neorrealista.
A montagem, por exemplo – que foi um processo por muito tempo propalado como o
mais importante do discurso fílmico – já não ocupava mais um lugar central no
discurso fílmico. A luz utilizada, em grande parte das obras, era natural. Em
relação à dimensão sonora, predominava o uso do som direto em detrimento das
orquestrações grandiosas de compositores como Max Steiner e Jerry Goldsmith. Efetivamente,
todos estes elementos foram organizados com o intuito de se produzir o efeito
de sentido de realismo e concretude. O filme Vidas Secas, como veremos posteriormente ao nos debruçarmos sobre
seus componentes estéticos, foi pautado em um discurso que muito se aproxima
dessa linguagem do cinema italiano pós-guerra.
Cabe, após essas descrições do
cinema neorrealista, perguntarmos: o que tudo isso tem a ver com a escrita de
Graciliano? O escritor alagoano surge em uma época da nossa literatura, como afirmara
Antonio Candido (1992), cheia de neorromânticos e neobarrocos.
Graciliano representa, dessa forma, a instauração de uma escrita menos
carregada de metáforas e de excessos emocionais. Observa-se, em seu modus operandi, uma ruptura com um
modelo de escrita empolada e floreada do Romantismo e de outras correntes que se
pautam no dramatismo e no contraste (não queremos dizer com isso que um modo de
escrita é superior ao outro). Antonio Candido (1992), sobre estas questões, nos
disse:
Esse
medo de encher lingüiça é um dos motivos da sua eminência, de escritor que só
dizia o essencial e, quanto ao resto, preferia o silêncio. O silêncio devia ser
para ele uma espécie de obsessão, tanto assim que quando corrigia ou retocava
os seus textos nunca aumentava, só cortava, cortava sempre, numa espécie de
fascinação abissal pelo nada – o nada do qual extraíra a sua matéria, isto é,
as palavras que inventam as coisas, e ao qual parecia querer voltar nessa
correção- destruição de quem nunca estava satisfeito. (p.144)
Graciliano Ramos foi, deveras, um
escritor muito exigente com sua obra. Não admitia o desequilíbrio da forma.
Porém, não se perdia em exercícios formais estéreis. Um dos pontos mais
notáveis de sua obra é o equilíbrio entre o plano da expressão e o plano do
conteúdo, ou seja, o que se diz e como se diz são dois processos
equivalentes. Nesse sentido, verificamos mais uma aproximação com o cinema de
Nelson Pereira, pois são dois artistas em que suas obras brotam do exercício da
inteligência e do contínuo trabalho com a forma. Tanto na escrita de Graciliano
como no cinema de Nelson, os componentes
materiais (as palavras e os planos) “inventam as coisas”. Portanto, expressão e
conteúdo, no modus operandi desses
artistas, não são fenômenos diferentes.
4- PLANO DE DETALHE: UM OLHAR SOBRE OS COMPONENTES
DA LINGUAGEM CINEMATOGRÁFICA.
Um
breve olhar sobre os componentes cinematográficos de Vidas Secas nos proporcionará uma melhor visão de conjunto da
narrativa fílmica. Sabemos, como nos mostrara A. J. Greimas, que “a
significação pressupõe a existência da relação: é o aparecimento da relação
entre os termos que é a condição necessária da significação” (1973, p. 28). A observação
de elementos isolados, portanto, não deve ser entendida como algo estanque,
pois o sentido emana não da soma das partes, mas do diálogo entre os elementos
da narrativa.
São
muitos os componentes que participam da construção de sentido de uma obra
fílmica, visto que o cinema é uma arte que, em sua própria constituição,
abrange variados discursos e formas artísticas. Dentre estes componentes
estéticos que mais nos chamaram a atenção na
obra de Nelson Pereira dos Santos destacamos: a economia de recursos, o uso
estético do silêncio, a questão do desafeto e da falta de comunicação no
processo de construção dos personagens, a utilização da perspectiva, e a
transmutação de isotopias de um sistema de signos para o outro (da narrativa
literária para a cinematográfica).
4.1- A ECONOMIA DE RECURSOS: UMA
ESTÉTICA DO MENOS
Vidas Secas
trata da escassez e da degradação humana. Há escassez de afeto, de comunicação, de alimentos, de
água, de recursos, de conceitos, dentre outros. Nelson Pereira expressou estas ideias (ou seja, transportou esta
isotopia para o cinema) através de uma estética que recusa tudo que não é
essencial para a construção do discurso fílmico. Por este motivo, a linguagem do
filme é seca (no sentido de ser direta: mostrar as coisas em si e não criar conceitos sobre estas), os planos são
montados sem abusar de recursos metafóricos e de efeitos visuais desnecessários.
Em
relação à câmera, podemos dizer que ela não se movimenta de maneira brusca e
capta somente o indispensável para a compreensão da narrativa. Na maioria das
vezes ela se encontra fixa, como se estivesse apenas fazendo um registro da
realidade. Busca-se, dessa maneira, captar as imagens de modo documental, como
uma forma de não exagerar (alguns diriam
“mascarar”) a realidade do sertanejo nordestino. O efeito de sentido firmado
pela câmera é, claramente, o de objetividade.
A
camada de sons do filme anda no mesmo sentido. Nunca é decorativa, pois sempre
está presente na película em virtude da expressão plástica da cena. Daí a
economia de sons do ambiente e a supressão (quase que em sua totalidade) de
música strictu senso. O elemento
sonoro que prevalece na trilha sonora é o da roda da carroça: um ruído
estridente e angustiante que se concatena muito bem à vida circular e repetitiva
da família de retirantes.
No
que se refere ao cenário do filme, vemos que ele é pobre e denuncia o desprezo humano.
O sol é filmado em plano fechado e acusa a desertificação e o forte calor da
região. As longas estradas que visualizamos parecem nos dizer que Fabiano e sua
família andam em direção ao vazio, a lugar nenhum. Os galhos secos e retorcidos
figurativizam o tema da ausência de afeto nas relações e o tema da fragilidade
humana. Por este motivo, também, é que as falas das personagens são demasiado
reduzidas.
Em
resumo, podemos afirmar – tendo em vista todas as constantes estéticas que elencamos
– que Vidas Secas é uma obra
cinematográfica pautada por uma estética do menos, em que os excessos são
recusados e se procura atingir uma expressão artística mais apolínea. Nesse
sentido, o cineasta é muito sensível ao universo de Graciliano – um escritor que,
nas palavras de Otto Maria Carpeaux (1999), “seria capaz de eliminar páginas
inteiras, eliminar os seus romances, eliminar o próprio mundo” (p.445).
4.2- A CONSTRUÇÃO DAS PERSONAGENS
Os
personagens de Vidas Secas são
marcados pela incomunicabilidade e pelo aspecto rude. Este fato pode ser
observado na própria estrutura da obra literária: capítulos isolados, quase que
independentes um do outro e a utilização de poucos diálogos, como já se
mencionou. Os personagens não são meros títeres nas mãos do escritor
nordestino. Sendo assim, cada personagem (incluindo a cadela) possui uma
consciência autônoma e formam, no conjunto da obra, uma verdadeira polifonia,
para utilizarmos um termo bakhtiniano. Nomeia-se
polifonia porque a voz do autor não é dominante. Ela se entrecruza com outras
vozes, que são também de igual valor para o discurso literário. Neste trecho do
livro, podemos verificar a construção de um contraponto entre duas vozes:
- Fabiano, você é um homem,
exclamou em voz alta.
Conteve-se, notou que os meninos
estavam perto, com certeza iam admirar-se ouvindo-o falar só. E, pensando bem,
ele não era homem: era apenas um cabra ocupado em guardar coisas dos outros.
Vermelho, queimado, tinha os olhos azuis, a barba e os cabelos ruivos; mas como
vivia em terra alheia, cuidava de animais alheios, descobria-se, encolhia-se na
presença dos brancos e julgava-se cabra.
Olhou em torno, com receio de que,
fora os meninos, alguém tivesse percebido a frase imprudente. Corrigiu-a,
murmurando: - Você é um bicho, Fabiano.
Isto para ele era motivo de
orgulho. Sim senhor, um bicho, capaz de vencer dificuldades. (RAMOS, 2010. p.
19)
Nelson
Pereira, sensível a essas questões, reconstrói através de planos sonoros e
visuais as principais constantes estilísticas que perfazem os personagens. O lado
desafetuoso, a desarmonia com o ambiente, o silêncio angustiante e a
animalização dos personagens foram reconstruídos no filme. O discurso do
diretor também não é dominante, ele deixa que a consciência de cada indivíduo que
compõe a obra literária brote no decorrer do filme.
Fabiano,
Sinhá Vitória, o menino mais novo e menino mais velho formam um painel da
degradação e da desgraça humana. Retirantes e sem perspectiva, andam sem
destino em busca de uma vida menos árida. A escassez de suas vidas chega a tal
ponto, que há a necessidade de se
eliminar um dos próprios personagens dessa saga, o papagaio (que, ao contrário do
que se pensa dessa espécie, trata-se de um bicho também silencioso). Não há
espaço em suas vidas para a demonstração de afeto e carinho. O trabalho com a profundidade
de campo denuncia tal efeito: a família geralmente aparece em planos diferentes
e um membro distante do outro.
O
soldado amarelo representa o autoritarismo e o patriarcalismo inerentes às
relações sociais do sertão nordestino. Franzino e covarde, sua força não é força
do homem bruto do sertão, mas se trata apenas de um poder legitimado pelas instituições
sociais. Pelo fato de ser um policial, ele se utiliza dessa força simbólica que
se encontra na farda para humilhar os menos favorecidos e sublimar seu lado
agressivo.
Baleia,
certamente um dos personagens mais marcantes da literatura nacional, possui uma consciência independente e parece ser uma das
personagens mais humanas e simpáticas da obra. No capítulo “Baleia”,
fica evidente o processo de humanização:
Baleia
encostava a cabecinha fatigada na pedra. A pedra estava fria, certamente Sinhá
Vitória tinha deixado o fogo apagar-se muito cedo.
Baleia
queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preás. E lamberia as mãos de
Fabiano, um Fabiano enorme. As crianças se espojariam com ela, rolariam com ela
num pátio enorme, num chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de preás,
gordos, enormes. (Idem, p.91)
No
que se refere à linguagem cinematográfica, a câmera contribui sobremaneira para
tornar a cachorra uma personagem importante na narrativa. Ao enquadrá-la, a
câmera movimenta-se de maneira mais intensa e imprime em sua composição uma
linguagem menos rígida, efeito de sentido que torna patente a humanização da
cadela.
Em
geral, os personagens do filme traduzem muito bem a falta de harmonia, de afeto
e de comunicação que se observa no livro de Graciliano. Não podemos deixar de
mencionar os elementos da linguagem cinematográfica, que são de grande
importância na construção de sentido das personagens: a maquiagem, o figurino,
a fotografia, a ausência de música, além de outros recursos.
4.3- O USO ESTÉTICO DO SILÊNCIO
Em
uma obra cinematográfica, a supressão dos sons
não pode ser entendida como uma ausência de signos. No cinema contemporâneo,
sobretudo naqueles que se baseiam em um discurso mais contido, observamos, cada
vez mais, que o silêncio é trabalhado como um valioso componente da estética do
filme.
Vários
são os sentidos que o silêncio pode expressar em uma obra audiovisual:
suspensão, ampliação de um drama, ocultação de informações, revelação de
sentimentos, sensação de angústia, dentre outros. Daí que precisamos observar,
de maneira minuciosa, as diferentes formas e funções desse componente musical
de uma obra fílmica, para melhor compreendermos o discurso cinematográfico.
Ney
Carrasco (1993), em seu estudo “Música e articulação fílmica”, elabora uma
interessante argumentação sobre o uso dramático do silêncio. O pesquisador faz
a seguinte divisão: o silêncio nas pistas de diálogos; o silêncio nas pistas de
música e o silêncio nas pistas dos sons naturalistas. Carrasco afirma que a pausa
nas pistas dos naturalistas é o tipo de silêncio mais peculiar e que pode gerar
dois interessantes efeitos. Um deles é o silêncio absoluto, no qual ouvimos
apenas os ruídos da sala de projeção. Outro efeito é a transferência das
informações sonoras apenas para a música. Ou seja, o silêncio é suplantado pela
presença dos sons musicais.
Em
Vidas Secas predomina um silêncio nas
pistas de diálogos, para expressar a escassez de comunicação entre os
indivíduos. Há também a utilização do silêncio nas pistas dos sons naturalistas
(ou seja, os ruídos do ambiente são retirados). Este último recurso nos leva a
uma atmosfera de vagueza e de existência tediosa. A ausência de som natural do
ambiente evidencia a ideia de que o mundo não tem mais significado para as personagens
inseridas nele.
4.4- A
PROFUNDIDADE DE CAMPO
Marcel
Martin (1963), em sua importante obra “A linguagem cinematográfica”, afirma-nos
que a profundidade de campo é uma das conquistas supremas da autonomia da
linguagem do cinema (p. 147). Diz-nos
também que este aspecto da imagem cinematográfica implica uma concepção de realização e também uma concepção de cinema.
Um
dos efeitos provocados pela profundidade de campo em um filme é a
simultaneidade de ações que podem ocorrer em um mesmo plano. Martin (1963)
alerta, porém, para o fato de que este efeito não pode desembocar na pura
teatralidade. Isto é, a câmera não pode simplesmente se fixar em um ponto para
captar diversas ações e perder sua capacidade de expressão. Vidas Secas é uma obra que consegue
coadunar (de forma convincente) a expressividade da câmera com a profundidade
de campo.
Nelson
Pereira utiliza, em algumas cenas, os personagens de Vidas Secas em diferentes pontos de um mesmo plano. Dessa forma, o
cineasta cria um rico efeito de profundidade. O sentido transmitido na cena é o
de distanciamento entre as pessoas. O diretor nos revela, assim, a ausência de
afeto nas relações familiares. Além disso, esta distância entre os indivíduos
(o que expõe visualmente várias direções e caminhos) parece nos dizer que a
família de sertanejos caminha ao léu, em busca do nada.
As
sequências em que fica mais evidente o uso
simbólico da profundidade de campo são as que
a família caminha na estrada em busca de uma moradia. Sinhá Vitória, com sua mala na cabeça,
é a personagem que
se encontra mais próxima da câmera, possivelmente ressaltando o seu papel
dominante nas relações familiares; Fabiano está um pouco mais distante da
câmera; o menino mais velho vem logo atrás de
seu pai e o menino mais novo ocupa a última posição no enquadramento.
5- A ISOTOPIA DAS LINGUAGENS
A
isotopia – inicialmente um termo utilizado na físico-química e posteriormente
transplantado para a semiótica por A. J. Greimas – refere-se aos procedimentos
utilizados para dar unidade e homogeneidade ao discurso. Para José Luiz Fiorin,
a isotopia se revela através de recursos como reiteração, redundância,
repetição e a recorrência de traços semânticos. Trata-se do procedimento que dá
coerência semântica ao texto.
Há
entre o romance literário e o filme uma transmutação de isotopias. Em outras
palavras: Nelson Pereira, sem deixar de lado a
experimentação e a capacidade criadora da linguagem fílmica, soube “transportar”
os diversos planos de sentido da obra de Graciliano para o cinema. Há diversas
isotopias presentes no livro que também podem ser observadas no filme: o tema
da escassez, da ausência de afeto, da exploração do homem do campo, da falta de
sentido da existência humana, dentre outros.
Em
relação ao plano da expressão de Vidas Secas, podemos verificar que existe uma harmonia entre a
obra fílmica e a literária. O discurso dos sons e das imagens procura recriar
procedimentos utilizados na escrita realista de Graciliano. Dentre as diversas
operações formais do filme, podemos destacar: A ausência de música strictu sensu para enfatizar a linguagem
seca de Graciliano; uso de poucos diálogos para evidenciar a incomunicabilidade
entre os personagens; um maior movimento na montagem dos planos em que aparece Baleia para demonstrar a “humanização” do pequeno animal.
Por fim, o distanciamento dos personagens no enquadramento (a profundidade de
campo) para mostrar a falta de afeto entre as pessoas.
5 6- ÚLTIMAS TOMADAS
Nelson Pereira dos Santos, ao invés
de apenas transportar uma linguagem verbal para uma linguagem audiovisual, procurou
realizar uma intensa pesquisa estética sobre as possibilidades de representação
da arte cinematográfica. O cineasta soube recriar, com mestria, as diversas isotopias
apresentadas no romance de Graciliano Ramos. Dentre os elementos utilizados
para a realização de sua transcriação,
destacamos a objetividade da câmera, a economia de recursos, a pouca utilização
de diálogos, o uso estético do silêncio e o simbolismo extraído da profundidade
de campo.
Vidas
Secas, neste sentido, trata-se de uma obra cinematográfica que não pode ser
rotulada como uma simples adaptação do romance de Graciliano, porque se utiliza
de uma linguagem que aponta novas possibilidades de leitura da obra literária. Estamos
diante de um filme que se propõe a realizar uma crítica, ao mesmo tempo, no
campo social e estético. No campo social a obra discute e põe em xeque as
estruturas mantenedoras da pobreza e do patriarcalismo da região Nordeste. No
campo da estética, questiona a decupagem do
cinema clássico e os padrões da narrativa tradicional hollywoodiana. Nelson
Pereira dos Santos consegue se desvencilhar, portanto, dos exercícios formais
estéreis (que não nos dizem nada) e dos discursos políticos sectários que
empobrecem a arte – problemas inerentes ao cinema brasileiro que foram
criticados por Glauber Rocha, de forma peremptória, em sua “Estética da fome”.
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São Paulo: Cultrix, 1981.
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USP. Dissertação de mestrado, 1993.
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São Paulo: Editora Contexto, 2011.
GREIMAS, A. J. ;
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São Paulo: Contexto, 2008.
GREIMAS,
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Tradução de Haquira Osakabe e Izidoro Blikstein. São Paulo: Cultrix: Edusp.
1973.
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PEREIRA, Cácio
Xavier. Primeiras e outras estórias: uma
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Mestrado. Universidade Estadual de Montes Claros – MG, 2011.
PLAZA, Julio. Tradução Intersemiótica. São Paulo:
Editora Perspectiva, 2003.
RAMOS,
Graciliano. Vidas Secas. 114 edição.
Rio de Janeiro: Editora Record, 2010.
ROCHA, Glauber. Estética da fome. (mimeografado), sem
data.
Estou relendo Vidas secas e queria muito lê alguma coisa sobre o romance e Graciliano,Valeu.
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