O CANTO QUE RASGA A
NOITE
Alfredo Werney
Aquela mulher que rasga a noite
com o seu canto de espera
Não canta
Abre a boca
E solta os pássaros
que lhe povoam a garganta
(Ana Paula Tavares. Dizes-me
coisas amargas como os frutos, 2001)
Ana
Paula Tavares, uma das grandes vozes da poesia angolana, nos impressiona,
muitas vezes, pelo rigor formal aliado às imagens oníricas de intensa
poeticidade. Na leitura desse conciso poema, observamos um conjunto de imagens
surreais (rasga a noite/ abre a boca e solta os pássaros). Porém, como faz
parte do estilo de Paula Tavares, suas imagens do inconsciente são regidas por um
intenso trabalho com os elementos formais. O poema nos apresenta, em primeiro
plano, as seguintes oposições semânticas: “ausência” versus “presença”. Há no
texto a expressão de um sentimento de angústia gerado pela tensão da espera da mulher, que chega a "rasgar a noite" com a intensidade do seu canto.
Do
ponto de vista da narratividade, percebemos a existência de valores
disjuntivos. Trata-se de um sujeito que deseja estar com o seu objeto de valor,
mas não consegue modificar este estado de disjunção. Na ausência deste objeto e
na impossibilidade de tê-lo no momento, o sujeito elimina a sua contenção e
passa a expressar o seu estado de angústia. Esta ideia está contida na cadeia
sintagmática: “abre a boca/ E solta os pássaros/ que lhe povoam a garganta”.
Podemos
dizer que no nível discursivo (o nível mais concreto da construção de sentido de um texto) o poema se refere à mulher que aguarda o amado e,
por ele não estar ao seu lado, rompe com o silêncio e a contenção. A expressão
da ausência e da angústia se dá através de gritos (tão forte que é capaz de
rasgar a noite; tão vivo e concreto que é como uma revoada de pássaros). Este
grito é o elemento que indica a não-possibilidade de mudança de estado nas
relações entre sujeito/ objeto.
É importante lembrarmos que, na sociedade do
sul de Angola, a mulher ainda é submetida à dominação androcêntrica e tem seu
corpo constantemente explorado sexualmente. Nesse texto, Paula Tavares
evidencia esta exploração da mulher e procura – para utilizar uma expressão da
própria autora – “dar voz as mulheres emudecidas”. Os verbos “abrir”, “rasgar”, “soltar” indicam a ideia de distensão
e libertação, além de possuir um forte teor erótico, pois sugestiona o próprio
ato sexual. A imagem, repleta de
inventividade, potencializa o discurso poético e explicita a visceralidade do
canto:
Não canta
Abre a boca
E solta os pássaros
que lhe povoam a garganta
A
cadeia sintagmática dessa estrofe é construída por imagens poéticas de grande
expressividade. O fato de não cantar, mas sim soltar pássaros da garganta,
amplia a força poética da palavra, na medida em que exprime visualmente a
materialidade desse canto. Em vez de ondas sonoras (invisíveis para os olhos
humanos) saem da garganta pássaros, ou seja, a matéria viva e palpável.
No
plano da expressão (onde se encontram as operações formais), observa-se, de forma clara, o uso ostensivo de consoantes linguodentais,
velares e bilabiais. Estas consoantes constroem uma sonoridade, por assim
dizer, “dura” e “rígida”. Efeito este que expressa muito bem a angústia da
mulher que espera o seu companheiro.
Aquela
mulher que rasga a noite
com o seu canto de espera
Não canta
Abre
a boca
E solta os pássaros
que lhe povoam a garganta
A
seqüência de p e b nos três últimos versos expressa de forma eficiente a explosão do
canto da mulher, que rasga a noite (um momento que, a princípio, é para ser de
descanso e reclusão):
Abre
a boca
E solta os pássaros
que lhe povoam a garganta
Alguns elementos do texto reforçam a ideia de
ausência, tema central da construção do poema. O primeiro elemento que indica
tal sentido é a inexistência de título no poema. Há também a supressão de nomes
próprios e de adjetivos (stricto senso).
A mulher “que rasga a noite com o seu grito”, por exemplo, pode ser qualquer
pessoa do sexo feminino. No tocante à ausência de adjetivos, percebe-se que se
trata de um traço estilístico que faz parte do projeto estético de Ana Paula:
sua poesia não “derrama” sentimentos, não julga de maneira direta e não impõe
às coisas impressões puramente pessoais. É notório
que Paula Tavares acentua, com estes recursos, a desvalorização da mulher angolana.
Mulher esta que, “pintada de cicatrizes” e com “os olhos secos de lágrimas”,
sobrevive os seus dias em meio a uma sociedade que inscreve em seu corpo “as
marcas da morte”.
Em
geral, este é o tom da poesia da escritora do Lubango: um canto visceral, “que
rasga a noite”, mas que está revestido por uma forma depurada que não extravasa
os limites da expressão, que não transborda. O deslumbre e o ilogismo das imagens não são
procedimentos utilizados para se conseguir efeitos fáceis nem para promover uma
simples distorção da linguagem poética. Trata-se, antes, de um efeito de
sentido calmamente pensado e construído.
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