terça-feira, 29 de maio de 2012

Paula Tavares






O CANTO QUE RASGA A NOITE
Alfredo Werney


Aquela mulher que rasga a noite
com o seu canto de espera
Não canta
Abre a boca
E solta os pássaros
que lhe povoam a garganta

(Ana Paula TavaresDizes-me coisas amargas como os frutos, 2001)

            Ana Paula Tavares, uma das grandes vozes da poesia angolana, nos impressiona, muitas vezes, pelo rigor formal aliado às imagens oníricas de intensa poeticidade. Na leitura desse conciso poema, observamos um conjunto de imagens surreais (rasga a noite/ abre a boca e solta os pássaros). Porém, como faz parte do estilo de Paula Tavares, suas imagens do inconsciente são regidas por um intenso trabalho com os elementos formais. O poema nos apresenta, em primeiro plano, as seguintes oposições semânticas: “ausência” versus “presença”.  Há no texto a expressão de um sentimento de angústia gerado pela tensão da espera da mulher, que chega a "rasgar a noite" com a intensidade do seu canto.

            Do ponto de vista da narratividade, percebemos a existência de valores disjuntivos. Trata-se de um sujeito que deseja estar com o seu objeto de valor, mas não consegue modificar este estado de disjunção. Na ausência deste objeto e na impossibilidade de tê-lo no momento, o sujeito elimina a sua contenção e passa a expressar o seu estado de angústia. Esta ideia está contida na cadeia sintagmática: “abre a boca/ E solta os pássaros/ que lhe povoam a garganta”.

            Podemos dizer que no nível discursivo (o nível mais concreto da construção de sentido de um texto) o poema se refere à mulher que aguarda o amado e, por ele não estar ao seu lado, rompe com o silêncio e a contenção. A expressão da ausência e da angústia se dá através de gritos (tão forte que é capaz de rasgar a noite; tão vivo e concreto que é como uma revoada de pássaros). Este grito é o elemento que indica a não-possibilidade de mudança de estado nas relações entre sujeito/ objeto.

             É importante lembrarmos que, na sociedade do sul de Angola, a mulher ainda é submetida à dominação androcêntrica e tem seu corpo constantemente explorado sexualmente. Nesse texto, Paula Tavares evidencia esta exploração da mulher e procura – para utilizar uma expressão da própria autora – “dar voz as mulheres emudecidas”. Os verbos “abrir”, “rasgar”, “soltar” indicam a ideia de distensão e libertação, além de possuir um forte teor erótico, pois sugestiona o próprio ato sexual.  A imagem, repleta de inventividade, potencializa o discurso poético e explicita a visceralidade do canto:

Não canta
Abre a boca
E solta os pássaros
que lhe povoam a garganta

            A cadeia sintagmática dessa estrofe é construída por imagens poéticas de grande expressividade. O fato de não cantar, mas sim soltar pássaros da garganta, amplia a força poética da palavra, na medida em que exprime visualmente a materialidade desse canto. Em vez de ondas sonoras (invisíveis para os olhos humanos) saem da garganta pássaros, ou seja, a matéria viva e palpável.

            No plano da expressão (onde se encontram as operações formais), observa-se, de forma clara, o uso ostensivo de consoantes linguodentais, velares e bilabiais. Estas consoantes constroem uma sonoridade, por assim dizer, “dura” e “rígida”. Efeito este que expressa muito bem a angústia da mulher que espera o seu companheiro.

Aquela mulher que rasga a noite
com o seu canto de espera
Não canta
Abre a boca
E solta os pássaros
que lhe povoam a garganta           

            A seqüência de p e b nos três últimos versos expressa de forma eficiente a explosão do canto da mulher, que rasga a noite (um momento que, a princípio, é para ser de descanso e reclusão):

Abre a boca
E solta os pássaros
que lhe povoam a garganta

             Alguns elementos do texto reforçam a ideia de ausência, tema central da construção do poema. O primeiro elemento que indica tal sentido é a inexistência de título no poema. Há também a supressão de nomes próprios e de adjetivos (stricto senso). A mulher “que rasga a noite com o seu grito”, por exemplo, pode ser qualquer pessoa do sexo feminino. No tocante à ausência de adjetivos, percebe-se que se trata de um traço estilístico que faz parte do projeto estético de Ana Paula: sua poesia não “derrama” sentimentos, não julga de maneira direta e não impõe às coisas impressões puramente pessoais.  É notório que Paula Tavares acentua, com estes recursos, a desvalorização da mulher angolana. Mulher esta que, “pintada de cicatrizes” e com “os olhos secos de lágrimas”, sobrevive os seus dias em meio a uma sociedade que inscreve em seu corpo “as marcas da morte”.

            Em geral, este é o tom da poesia da escritora do Lubango: um canto visceral, “que rasga a noite”, mas que está revestido por uma forma depurada que não extravasa os   limites da expressão, que não transborda. O deslumbre e o ilogismo das imagens não são procedimentos utilizados para se conseguir efeitos fáceis nem para promover uma simples distorção da linguagem poética. Trata-se, antes, de um efeito de sentido calmamente pensado e construído.

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