domingo, 31 de maio de 2009

Um belo texto sobre Tim Burton


Burtonland
Wanderson Lima*

O mundo de Tim Burton atende pelo nome “fantasia” e seu fundamento é a nostalgia. Nostalgia não apenas dos episódios vividos outrora – o quintal da infância, os coleguinhas da escola, os doces e bolos da vovó –, mas também de algo não-vivido, a saudade de um “não sei quê, que nasce não sei onde” (Camões) descrita por Platão como a reminiscência que a alma, parte incorruptível e eterna do homem, sente do mundo das idéias.
No mundo de Tim Burton – um mundo que muda de nome, muda de endereço, mas continua, felizmente, o mesmo – seus personagens têm, como ocorre na famosa alegoria de Platão, de sair da caverna. Não pelo fato de a “caverna” burtoniana só oferecer ilusões e mentiras, mas porque a magia e a beleza nela contida não serão reveladas antes de os personagens conhecerem outras realidades. Essa viagem a outros mundos ganha foros de rito de iniciação, tornando-se uma condição sine qua non para que a personagem adquira maturidade. Há sempre dois mundos: o de cá, que pode ser espaço de purgação ou leito de monotonia, e o de lá, muito estranho, desconhecimento, certamente fonte de dores e sofrimentos, mas lugar obrigatório de passagem, caso se almeje evolução espiritual. Jack Skellington (The Nightmare Before Christmas / O estranho mundo de Jack, 1993) – o rei das abóboras da cidade do Halloween – sai em busca da cidade do Natal; Victor Van Dort (Corpse Bride / A Noiva-Cadáver, 2005) vai ao mundo dos mortos; Sweeney Todd (Sweeney Todd: The Demon Barber of Fleet Street / O barbeiro demoníaco da Rua Fleet, 2007) passa 15 anos degredado na Austrália. Não restam dúvidas de que todas estas viagens iniciáticas são difíceis e causam sofrimento em seus protagonistas. Mas o que seria a vida de Jack, e de Victor e de Todd sem elas? Das viagens vem a força espiritual, a maturidade, a auto-confiança de que eles precisavam; sem ela, os casamentos de Victor e Todd possivelmente afundariam em modorra ou, no máximo, numa pseudofelicidade que não passa de tolice; sem ela, Jack seria uma assombração arruinada, não pela falta de talento, mas pela sensação esmagadora de inutilidade naquilo que faz.



O talento de Burton – um cineasta do estúdio e do artifício, como disse Ruy Gardnier – se mostra evidente na composição de seus mundos. Ele os elabora sem dar muitas explicações sobre a presença do fantástico e do sobrenatural, mas com um cuidado rigoroso com a mise-en-scène e sua interação com as personagens: objetos, cenário, gestos, tudo coaduna a psique dos seres com o ambiente. A mise-en-scène oferece, por assim dizer, o “clima moral” de cada mundo. Em A Noiva-Cadáver, por exemplo, a distribuição caótica dos objetos, o desmembramento constante dos cadáveres e as cores quentes e variadas do mundo dos mortos se coaduna com o hedonismo dos que ali habitam, assim como a decadência econômica e a circunspeção hipócrita que permeia o mundo dos vivos, especialmente dos Everglots, está na organização do espaço e nas opções de cores. O mesmo se diga de outras obras do diretor, com especial destaque para a Londres de Sweeney Todd – quiçá o melhor trabalho de fotografia e direção de arte já vistos em Burton –, uma Londres artificialmente monocromática e estreitamente afim com a psique dos habitantes.


O de Burton é um cinema total, em que o progresso da narração depende de todas as camadas do discurso fílmico; as pequenas coisas são postas com clara intencionalidade, deixando de ser mera moldura para ser tornar signo, isto é, objeto de significação. Lembremos o olho saltitante da Noiva-Cadáver ou, com mais evidência ainda, o sangue vermelhíssimo que rompe o monocromatismo de Sweeney Todd. Esse caráter de cinema total pede, como não poderia deixar de ser, um olhar atento e livre de preconceitos contra o filme comercial. Digo “atento” porque, em geral, quando um cinéfilo descansa de seus Ozus e Antonionis para assistir a uma produção abertamente comercial, sua atitude comum é relaxar a atenção. Com Burton esse relaxamento não funciona bem; sem dúvida, ele elabora histórias atraentes e agradáveis de se ver, cuja estilização ostensiva afasta os horrores das ações violentas e da morte (lembremos como o sangue excessivo e de um vermelho aberrante abranda as cenas violentas de Sweeney Todd), mas muito se perde quando não se atenta ao modo de elaborar “atmosferas” bastante reconhecíveis nos filmes de Burton e que remetem, ideologicamente, àquela mistura do grotesco com o sublime preconizada pela arte romântica e bem tão expressa por Victor Hugo no seu prefácio ao drama Cromwell (1827): “a musa moderna verá mais coisas com um olhar mais elevado e mais amplo. Sentirá que tudo na criação não é humanamente belo, que o feio existe ao lado do belo, o disforme perto do gracioso, o grotesco no reverso sublime, o mal com o bem, a sombra com a luz”. Para Hugo, a sensibilidade moderna extrai seus melhores resultados quando renega a “uniforme simplicidade do gênio antigo”, fazendo coexistir em sua obra esta infinidade complexa de formas que emerge quando se faz coexistir o grotesco com o sublime. Elaborado há mais de um século e meio, este programa artístico romântico serve muito bem para sintetizar a base estética do cinema burtoniano. Todos os monstros adoráveis e os humanos esquisitos que povoam o cosmos burtoniano são, em maior ou menor grau, parentes dessa criatura hugoniana chamada Quasímodo, mais conhecido como Corcunda de Notre-Dame. Burton – que foi um menino rebelde criado pela avó, deslocado na escola, cinéfilo inveterado e leitor ávido de Poe – se derrete de carinho por seus esquisitos protagonistas, indisfarçavelmente seus alter-egos, doando-lhes uma dignidade humana e moral de proporções inversas à caricatura pejada de rancor de seus inimigos (lembremos de Lorde Barkis, em A Noiva-Cadáver, ou de Turpin , em Sweeney Todd).



Essa ligação de Burton com a estética do grotesco, de onde deriva sua paixão pelo expressionismo alemão e por Vincent Price e Ed Wood, paixões essas que marcam tão profundamente a estética de seus filmes, atraiu a atenção de todos esses adoradores da tristeza que se reúnem nas urbes sobre rubricas como góticos, darks e emos. Encanta-os, como a nós também, a dignidade, a graça e a leveza que Burton empresta aos feios e disformes, aos tímidos e aos deslocados. Mas Burton, ao contrário deles, não é um apologeta da melancolia. Seu desencantamento é reativo e crítico e faz de seus filmes (não apenas as animações) fábulas bastante avessas ao moralismo simplificador das relações humanas que assola mesmo, em alguns momentos, as produções da Disney. Burton não corteja a ingenuidade nem faz esforços de afastar seus protagonistas da dor; a liberdade de suas criaturas não vem de graça nem por conta de discursos edificantes. Sally, a boneca de pano que se apaixona por Jack, tem de se desmembrar e se costurar novamente para conseguir sua liberdade. Antes disso, ela tentara a liberdade não por meio de diálogo – solução mais desejada, porém, no caso, impossível – mas tentando envenenar seu criador, Dr. Finkelstein, que encarna a frieza da ciência. Em outra passagem do filme, será decisivo novo desmembramento seu para salvar Papai Noel (ou Papai Cruel, segundo a lógica dos habitantes da cidade do Halloween). Tudo – até a integridade do nosso corpo – precisa ser posto em jogo na busca por uma vida melhor.
Embora Burton não dê claras indicações de ser religioso no sentido estrito do termo, a nostalgia de outros mundos que encontramos em suas narrativas apontam para a loucura de se viver na imanência absoluta. Sem negar, mas também sem recorrer a uma fonte transcendental, Burton nos oferece uma prática de demiurgia forte, eminentemente metafísica, que rasga o cosmos em dois mundos, sendo que a verdade situa-se mais no mundo de lá (o mundo dos mortos em A Noiva-Cadáver, a cidade do Natal em O estranho mundo de Jack) que no de cá. Acreditamos tanto na realidade paralela que Burton nos oferece – mesmo porque temos a sensação que, lá, alguns de nossos defeitos ou serão desprezíveis ou até nos darão uma vantagem extra – que, por alguns instantes, apalpamos as coisas ao nosso redor em busca da integridade ontológica do nosso mundo. Essa força de persuasão vem, exatamente, das operações de estúdio (e de computação gráfica) desse cinema artificial, neo-expressionista sobre muitos aspectos. O modo de ele pôr os dilemas morais pode não atingir os píncaros de complexidade que vemos em Lang e Murnau (mas tampouco é de somenos); não obstante, o poder de encanto, que em comum é o que mais fica, é o mesmo.

* Wanderson Lima é professor e poeta. É doutorando em Literatura comparada pela UFRN e autor de vários livros.

3 comentários:

  1. um grande texto! realmente o mundo de Tim Burton é fantástico!

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  2. Meu caro amigo Côcão eu concordo com vc,mas tenho algums ressalvas.Crei que as vezes esse universo poético burtoniano (diga-se, um universo meio que as avessas) chega a ser enfadonho para um espírito mais exigente e mais cambiante. O mundo de Tim Burton apela para dimensão do fantástico,do imponderável, mas as vezes este mundo que ele cria se esgota em si mesmo. Na verdade o fantástico em Burton, de tão repetido e experimentado, paradoxalmente perde a fantasia.

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