sábado, 1 de maio de 2010

futebol

(Nelson Santos)

ELEGIA PARA UM FENÔMENO (Wanderson Lima)

“Quando quanda”.

(Guimarães Rosa)

RONALDO: O PROTEU DO FUTEBOL

A virtude protéica de Ronaldo dá sinais de estar acabando. Proteu, para quem não lembra bem, é uma divindade mitológica aquática que se sobressaía através de dois dons: a premonição e a metamorfose. A premonição: Ronaldo sempre me pareceu ser capaz de ver o que aconteceria uns 2 ou 3 segundos antes que os demais, o que lhe dava dois privilégios: colocar-se no lugar certo, antecipando-se a todos, e tocar para o jogador mais inesperado, deixando-o na cara do gol. O dom premonitório de Ronaldo, claro, não tinha nada de sobrenatural, era fruto de sua boa forma física (lembram-se? O cara era o rei das arrancadas) e de uma rapidez de pensamento assombroso. Ronaldo não deixava pra pensar depois de a bola estar nos pés: quando ela chegava, já sabia exatamente o que fazer. A metamorfose: Ronaldo foi, ao longo da carreira, vários jogadores num só, mantendo em todas as suas transformações as virtudes do drible fácil, do faro de gol e da rapidez de pensamento. Não sou capaz de descrever precisamente o que foi mudando e o que ficando em cada fase de Ronaldo, mas seria interessante uma observação mais sistemática dos vídeos de Ronaldo desde o Cruzeiro até o Corinthians.

RONALDO: O PARADIGMA DO CRAQUE

Um craque, a meu ver, é uma mistura de arte e necessidade: o craque se equilibra entre tomar o futebol em si mesmo e em jogar pelo resultado. Como se trata de um equilíbrio frágil, e como todo gênio da bola é ex-cêntrico, a balança do craque em geral acaba pesando para o futebol-espetáculo em detrimento do futebol-resultado. Ser craque, portanto, é estetizar o futebol, é fazer o jogo inclinar para a dança, para as artes plásticas, fazendo dele uma espécie de filme involuntário. O centro da estetização do futebol, como nos ensinam Pasolini e Wisnik, é o drible. E assim como nenhum artista de valor se compraz em apenas copiar o estilo do outro, nenhum craque digno do nome quer driblar como outro. A equação que define um craque tem dois pólos: inventar dribles (atendendo à dinâmica estética do futebol) e fazer gol (fazendo jus à lógica do resultado, ao futebol como atividade capitalista).

Ora, Ronaldo desenvolveu como poucos a capacidade de equilibrar esses dois pólos. Mais uma vez, para quem se interessa, seria interessante ver os vídeos de Ronaldo com o sentido de tentar catalogar suas invenções e a maneira como ele equilibrava a necessidade entre dar espetáculo e jogar pelo resultado. O arranque, o drible seco, a ambidestria, a perspicácia na antecipação aos lances, a virada de jogo para o lado imprevisto são apenas uns poucos recursos do Fenômeno que salta aos olhos até dos mais desatentos.

RONALDO HOJE, OU A FACE DO CONSTRANGIMENTO

Na era Corinthians, por um breve espaço de tempo, uns 5 meses, Ronaldo voltou a ser um fenômeno, o Fenômeno. Isto lhe exigiu muita abnegação: disciplina, treino forte, concentrações entediantes, controle com as farras. Mas o que ficou claro, desde o início deste ano, e que sempre esteve impresso no semblante de Ronaldo, foi a indisposição de seguir esta rotina ascética. Seja porque pressentiu que já tinha provado a si que era um Proteu, seja porque se conscientizou que, por melhor que jogasse, não iria à Copa, a verdade é que Ronaldo dá a entender, pra mim e para muitos outros brasileiros, que nenhum esforço vale à pena.

Ver o jogo de Ronaldo nas últimas partidas tornou-se constrangedor. O problema não é somente que ele esteja gordo e fora de forma: o pior é o abatimento, que faz de Ronaldo assustadoramente um jogador distraído, sem intuição, no máximo com a capacidade de armar uma ou outra jogada. Todo jogo do Corinthians, nos últimos tempos, exige de mim, e de muitos outros brasileiros, uma dupla torcida: pelo Corinthians e pelo Ronaldo. Sinto-me (e acho, mais uma vez, que não estou sozinho) como uma criança que tem um pai alcoólatra e sonha com o dia em que ele chegue a casa lúcido e com um presente, mas nas raras vezes em que ele chega lúcido, vem sem presente e ainda por cima indiferente. Como este imaginado pai alcoólatra, Ronaldo raras vezes “chega lúcido”. E o “presente” de uma grande partida ele está nos devendo, salvo lapso de memória, desde um Corinthians e Fluminense no Brasileirão de 2009.

Não aposto muito que o Corinthians irá segurar o Flamengo em São Paulo, na segunda partida das oitavas da Libertadores. Assim, além de sofrer pela desclassificação do meu time, não vou conseguir parar de pensar no destino de Ronaldo. Muito possivelmente, ele passará a ser hostilizado pelas duas maiores torcidas do Brasil. Se isso ocorrer, vai ser muito injusto. Mas as massas apaixonadas não costumam mesmo ser justas. Pelo lado do Flamengo, a hostilidade contra Ronaldo é uma reação ingênua a um suposto “bolo” que o jogador teria dado no seu suposto clube do coração, ao preferir ir para o Timão; pelo lado Corinthians, Ronaldo será o bode expiatório pela não conquista da Libertadores. De ambos os lados, ingenuidade e injustiça.

Mesmo se minha previsão estiver incorreta (e, como corinthiano, é tudo que eu desejo), caso Ronaldo não volte a jogar bem, uma hora ou outra ele vai acabar no banco de reservas. Para quase qualquer jogador do mundo, seria uma situação normal, ou pelo menos previsível. Não para o Fenômeno. A pergunta que fica é: foi sábia a decisão de retornar ao futebol? E mesmo que tenha sido, não seria melhor dar adeus à bola após a Libertadores? Se Ronaldo chegasse a fazer isso (duvido um pouco), ele seria malhado por alguns meses, mas, no final, a imagem dele que ficaria seria a do que ele de fato é: um craque. O que não queremos ver é o Fenômeno se arrastando em campo, caindo no chão feito jenipapo podre, tocando de primeira na bola com medo de errar, distraindo-se e matando a redonda de mau jeito, sendo (meu Deus!) substituído por Souza.

É constrangedor ver a genialidade aviltada. É triste ver na cara de um craque, de um autêntico craque, o mal-estar depois de desperdiçar um lance de meio-gol. A cara de Ronaldo, nos últimos jogos, é a cara do constrangimento.


*Wanderson Lima é poeta e professor da UESPI. doutorando em literatura comparada pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)

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