A MULHER SEM CABEÇA, DE LUCRÉCIA MARTEL
(Wanderson Lima)*
A mulher sem cabeça (La mujer sin cabeza, Argentina, 2008), de Lucrecia Martel, é um filme que demonstra que a diretora argentina não só domina plenamente seus meios expressivos, mas que sabe alargá-los além das influências. Porém, que se diga logo de saída: Martel não é, não me parece ser, uma cineasta de grande força analítica e de proposições fortes; antes, é uma construtora de atmosferas ambíguas e sutis.
Seus filmes me lembram às vezes certos contos de Tchecov ou de Katherine Mansfield: observações finíssimas sobre comportamento social das pessoas, pleno domínio do meio expressivo e muita, muita sutileza nos diálogos incompletos, nas imagens-metáforas sugestivas, nos finais sem desfecho. Porém, em Tchecov, e mesmo em Mansfield, se sobressai uma poderosa, complexa e desencantada visão sobre o ser humano; em Martel, me parece que falta certa força propositiva. Situação estranha esta: no continente dos cineastas politizados até os dentes, onde se fez e se faz filmes e mais filmes com o propósito de consertar o mundo, eis que surge uma cineasta que se cala. Não querer reformar o mundo me parece algo sensato, não dizer nada sobre o mundo me parece pusilanimidade.
E então, para que serve tanta sutileza, tanta ambigüidade? Sim, já sabemos que neste mundo tudo precário, que ninguém conhece ninguém a fundo, que a comunicação raras vezes passa de um engodo, etc. Desculpe o leitor o excesso de filosofismo; só quero assegurar que, se absolutizo a ambigüidade, não vou passar desse lengua-lengua. Grandes mestres da ambigüidade – Montaigne, Tchecov, Flaubert, Machado ou, no cinema, Bergman, Bresson, Hitchcock – sabiam gritar quando se fazia necessário. Martel não sabe gritar. Admito que minhas comparações são esmagadoras. Então, passemos a perscrutar o filme dela, e vejamos como sua máquina de sutileza se põe a funcionar.
Verónica, a protagonista, atropela algo na estrada (dá pra ver que é um cachorro) e não olha para trás. Sem saber se atropelou um animal ou um ser humano, Verónica entra em parafuso. Martel encena este parafuso mimetizando-o via enquadramento, de modo a aniquilar qualquer dicotomia entre forma e fundo. Ela não diz didaticamente: “Olha, veja como depois do acidente o mundo dessa coitada se partiu”. Não. Ela nos faz sentir a fragmentação psíquica da protagonista via encenação. Por exemplo, os primeiros planos com a câmera colada na nuca de Verónica nos dão a sensação de cisão entre o mundo interior dela e o mundo de fora, parece que tudo ao seu redor deixou de ser familiar; em outros momentos, num mesmo enquadramento há tantos quadros com ações secundárias que esquecemos qual é o quadro principal (o foco) e nos perdemos no mundo tal como a protagonista. Como a protagonista, estamos até mesmo correndo o risco de nos tornamos paranóicos ao atribuir a pequenos ocorridos proporções gigantescas; isso porque a diretora cria uma porção de atmosferas falsas, nos preparando para a tragédia que não vem, ou para o susto que não vale à pena. A ambigüidade, aliás, contamina o próprio gênero do filme, que oscila entre o suspense, o drama psicológico e o filme fantástico. Chega uma hora que, como em Lynch, o real perde toda consistência ontológica: não sabemos se a pessoa que se afasta do enquadramento é um ser humano ou um fantasma; não sabemos se certa cena deu-se só na imaginação da protagonista ou foi na realidade (digo, na realidade dentro da lógica do filme). Perdemos as fronteiras entre o interior e pessoal versus o exterior e coletivo. A mulher sem cabeça esmaga nosso orgulho de cinéfilo do olhar bem educado e nos obrigada a realfabetizar nosso olhar. A cabeça da mulher está fora do lugar porque o mundo deixou de ser inteligentível para ela, perdeu aquela racionalidade que lhe garante a confortante (e enfadonha) normalidade; já nós, espectadores, assistindo ao filme, podemos nos considerar criaturas sem olhos, ou melhor, com criaturas com os olhos analfabetos.
Se o filme é tão delicado e ambíguo, se a autora se move e
Seus filmes me lembram às vezes certos contos de Tchecov ou de Katherine Mansfield: observações finíssimas sobre comportamento social das pessoas, pleno domínio do meio expressivo e muita, muita sutileza nos diálogos incompletos, nas imagens-metáforas sugestivas, nos finais sem desfecho. Porém, em Tchecov, e mesmo em Mansfield, se sobressai uma poderosa, complexa e desencantada visão sobre o ser humano; em Martel, me parece que falta certa força propositiva. Situação estranha esta: no continente dos cineastas politizados até os dentes, onde se fez e se faz filmes e mais filmes com o propósito de consertar o mundo, eis que surge uma cineasta que se cala. Não querer reformar o mundo me parece algo sensato, não dizer nada sobre o mundo me parece pusilanimidade.
E então, para que serve tanta sutileza, tanta ambigüidade? Sim, já sabemos que neste mundo tudo precário, que ninguém conhece ninguém a fundo, que a comunicação raras vezes passa de um engodo, etc. Desculpe o leitor o excesso de filosofismo; só quero assegurar que, se absolutizo a ambigüidade, não vou passar desse lengua-lengua. Grandes mestres da ambigüidade – Montaigne, Tchecov, Flaubert, Machado ou, no cinema, Bergman, Bresson, Hitchcock – sabiam gritar quando se fazia necessário. Martel não sabe gritar. Admito que minhas comparações são esmagadoras. Então, passemos a perscrutar o filme dela, e vejamos como sua máquina de sutileza se põe a funcionar.
Verónica, a protagonista, atropela algo na estrada (dá pra ver que é um cachorro) e não olha para trás. Sem saber se atropelou um animal ou um ser humano, Verónica entra em parafuso. Martel encena este parafuso mimetizando-o via enquadramento, de modo a aniquilar qualquer dicotomia entre forma e fundo. Ela não diz didaticamente: “Olha, veja como depois do acidente o mundo dessa coitada se partiu”. Não. Ela nos faz sentir a fragmentação psíquica da protagonista via encenação. Por exemplo, os primeiros planos com a câmera colada na nuca de Verónica nos dão a sensação de cisão entre o mundo interior dela e o mundo de fora, parece que tudo ao seu redor deixou de ser familiar; em outros momentos, num mesmo enquadramento há tantos quadros com ações secundárias que esquecemos qual é o quadro principal (o foco) e nos perdemos no mundo tal como a protagonista. Como a protagonista, estamos até mesmo correndo o risco de nos tornamos paranóicos ao atribuir a pequenos ocorridos proporções gigantescas; isso porque a diretora cria uma porção de atmosferas falsas, nos preparando para a tragédia que não vem, ou para o susto que não vale à pena. A ambigüidade, aliás, contamina o próprio gênero do filme, que oscila entre o suspense, o drama psicológico e o filme fantástico. Chega uma hora que, como em Lynch, o real perde toda consistência ontológica: não sabemos se a pessoa que se afasta do enquadramento é um ser humano ou um fantasma; não sabemos se certa cena deu-se só na imaginação da protagonista ou foi na realidade (digo, na realidade dentro da lógica do filme). Perdemos as fronteiras entre o interior e pessoal versus o exterior e coletivo. A mulher sem cabeça esmaga nosso orgulho de cinéfilo do olhar bem educado e nos obrigada a realfabetizar nosso olhar. A cabeça da mulher está fora do lugar porque o mundo deixou de ser inteligentível para ela, perdeu aquela racionalidade que lhe garante a confortante (e enfadonha) normalidade; já nós, espectadores, assistindo ao filme, podemos nos considerar criaturas sem olhos, ou melhor, com criaturas com os olhos analfabetos.
Se o filme é tão delicado e ambíguo, se a autora se move e
ntre Lynch e Hitchcock sem fazer feio, se com menos de uma hora e meia o filme, de tão sutil, deixa o espectador atento psiquicamente cansado de tanto quebrar a cabeça, por que pedir mais da diretora, porque esmagá-la com comparações desproporcionais? Simples: porque Lucrecia Martel é a maior autora viva de filmes de ficção da América Latina. Sei da responsabilidade dessa frase de efeito mas, graças a Deus, estou longe de está só nesta consideração. Temos que cobrar dessa senhora argentina porque ele tem condições de nos dar mais. Com apenas três filmes ela já fez muito; o risco é se prender aos maneirismos; o risco é imitar demais o ourives quando filma e, no final, esquecer de gritar.
*Professor e poeta. Doutorando em literatura comparada pela UFRN .
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