terça-feira, 19 de outubro de 2010

Lula, o filho do Brasil



LULA, FILHO DO BRASIL (2009), DE FÁBIO BARRETO

Wanderson Lima



NOTA PRÉVIA: O momento é propício para algum serrista achar que este texto é uma peça anti-Lula, portanto, anti-Dilma. Digo que não é; o que me interessa é discutir cinema, que tem obviamente sua dimensão política, mas que não é um servo da política, ou de ideais políticos. Participo publicamente, para que se dirima qualquer insinuação, que meu voto no segundo turno será para candidata petista.


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Não considero justo julgar por um ângulo estritamente estético uma obra que não foi feita estritamente com esse fim. “Lula, o filho do Brasil” (2009) pertence voluntariamente ao que se chama de indústria do entretenimento. Sua finalidade foi faturar números, e tudo o mais veio a reboque desta meta suprema. Ronda a suspeita – para alguns, a evidência – de que se trata de propaganda ideológica. Os detratores de Lula se resfestelaram com o banquete oferecido por Fábio Barreto, aproveitando para escavar da situação insinuações de um suposto fascismo do Presidente Lula. Os patrulheiros de plantão, munidos com as armas mais secretas guardadas no bornal das hermenêuticas da suspeita, saíram com as teorias conspiratórias mais ensandecidas. Destas, me agrada bastante, pelo seu caráter risível, a que diz que o filme foi feito para alavancar a campanha de Dilma Rousseff. Esta é a hipótese: ao deslocar-se, no filme, o foco de atenção Lula para Lindu (a mãe do “Cara”), os criadores estariam produzindo – num plano “ideológico”, “inconsciente”, “estrutural profundo”, ou sei lá o quê – nossa identificação ingênua entre a mãe de Lula e Dilma. Em suma, a mensagem “subliminar” do filme seria: se o Lula é o filho do Brasil, Dilma é a mãe do filho, ergo, a mãe do Brasil. Quanta sagacidade!

No Inferno forjado na Comédia de Dante, os pusilânimes são considerados tão indignos que nem entrar naquele recanto lúgubre podem. Pois o Fábio Barreto que fez Lula é um consumado pusilânime: esforça-se por afastar qualquer suspeita de seu filme. Tampa, dessa forma, o sol com uma peneira. Antes de a história se iniciar, faz questão de avisar que não recebeu qualquer fomento federal, estadual ou municipal. Porém, que maior fomento que o aval do Presidente para realizar o filme? A pusilaminidade maior de Barreto foi se vender sem querer dar a aparência que o foi, sem a energia de assumir uma posição firme, incapaz (e não por questões técnicas) de fazer de fato um filme ideológico. Como assim, o filme não é uma apologia do herói (sem aspas) Lula? Sem dúvida. Mas uma apologia acovardada, que salta o político e desce ao melodrama para escamotear sua postura política. É o filme sobre um filho qualquer do Brasil, não sobre o sindicalista fundador do maior partido de esquerda das Américas. Ou seja: vende cinicamente a idéia de ser neutro, de estar representando a vida de mais um nordestino que “venceu na vida”.

Sei que parece paradoxal a idéia de uma apologia neutra, mas insisto nela. Quero dizer com isto que Fábio Barreto busca, nas suas operações formais e no seu roteiro, um ponto cego – que jamais existiu, diga-se de passagem – a partir do qual ele vê Lula como inteira isenção. Barreto comporta-se como um historiador positivista do século XIX, acreditando ser capaz de, bem documento e mantendo-se distante do que narra, trazer o passado tal qual aos nossos olhos. Barreto abdica de um gesto indispensável na representação de uma figura pública de relevo: produzir uma interpretação, no sentido forte do termo. Ele nega estar produzindo um mito, sob o pretexto de apenas estar representando um mito que se autoproduziu através de um esforço honesto.

Geralmente, a busca da neutralidade via representação artística (mímesis) atende pelo nome de realismo. Algumas vezes, certamente não em todas, o termo realismo recobre um visão simplória do que toma por realidade – simplória por acreditar que o simbolismo da mímesis deixa o real passar tal qual, sem qualquer filtro. Em cinema, a apologia do realismo, isto é, de uma representação límpida do real depende de um paradoxo: a negação da natureza fílmica do filme. Negar que o filme é um filme, evitar que expedientes formais e metalingüísticos cortem a ilusão de realidade que a imagem em movimento emana são estratégias usadas desde longa data por um tipo de cinema que quer descer ao mais puro grau de entretenimento, evitando o ruído inconveniente das reflexões. O problema é que este cinema que quer ser pura verdade é o mais puramente convencional, o mais preso à gramática fílmica convencional. Lula, o filho do Brasil que ser este filme de representação límpida, sem ruído e, por isso, acolhe sem o menor pejo tudo o que é convenção e clichê; sendo um filme “realista”, ao mesmo tempo é um filme extramente insincero, incapaz de gerar emoção autêntica. Por trás de cada arroubo emotivo, de cada drama encenado sentimos a mão pesada do artifício batido, do truque que nos quer fazer bobalhões. Trata-se de uma obra que justifica a assertiva de que erros éticos geram erros estéticos. E o erro ético central, como já enunciei, foi a pusilanimidade do realizador. Vejamos um pouco por quê.

Fábio Barreto, não interpretando fortemente a figura do Lula, preferiu vestir seu personagem com um arquétipo bastante conhecido: o do herói. Não nego que haja lances heróicos na vida de Lula, mas há um limite para o exagero, e a visão simplista de Barreto não soube ver qualquer limite. No filme, cada ato da vida de Lula, desde pequeno, é o sinal de uma predestinação; cada dificuldade que enfrenta, uma prova que o levará a um patamar superior. Como Héracles, Lula vai, de trabalho em trabalho, ganhando um halo sobre-humano. Esvai-se, nesta operação, toda a complexidade da figura; qualquer ambigüidade moral é eliminada a machadada. O que sobra é uma criatura achatada, previsível, que faz dos demais personagens figuras mais apagadas ainda, meras escadas à disposição do herói que, sabemos, triunfará. A escada mais segura para o personagem Lula galgar o triunfo é sem dúvida a mãe, Lindu; nela temos o arquétipo mariano da doação total ao filho e a mais reta previsibilidade.

Não nos cabe cobrar do cineasta fidelidade da ficção à realidade, e não estamos aqui fazendo isto. Ao heroicizar a personagem, o mal gerado não adveio do fato de o cineasta está exagerando as verdades, ou mesmo mentindo. O problema é como esta operação exime o cineasta de interpretar a complexa figura que apresenta. Do ponto de vista da arquitetura do filme, esta opção é desastrosa: obriga Barreto a submeter-se à lógica do crescimento do herói (cada ação filmada deve acumular mais um dado para a manifestação do caráter excepcional, heróico, do protagonista), mesmo quando esta não é coerente com a economia formal do filme e prejudicial à sua verossimilhança. A este respeito, o filme oferece muitos exemplos; ficarei com dois bem simples. O pequeno Lula assiste aos meninos jogar bola; vê-se, pelo destaque com que aparece na encenação, que ele é diferente. Chega o pai de Lula, agressivo, proibindo-o de jogar, dando-lhe safanões e dizendo que o direito dele é apenas trabalhar. O menino corre rumo a casa sob os cascudos do pai; a mãe o protege. O pai, então, garrafa de cachaça na boca, repete: “Tem que brincar não, tem que trabalhar”. Esta encenação dá-se no melhor estilo melodramático; afinal, o coitadinho comia mal, morava mal e tinha um pai sem afeto, alcoólatra e violento. Porém... bonzinho que era, e guiado pelos sábios conselhos de uma mãe alquebrada mas humilde e temente a Deus, o menino haveria de “vencer na vida”. Praticamente todos os episódios apresentam o mesmo didatismo irritante. Não dá aqui para não fazer menção ao prólogo do filme, bastante infeliz. O pai vai para São Paulo ganhar a vida, deixando a família, com sua escadinha de filhos, no sertão pernambucano; na saída, se despede do cachorro, beija-o inclusive, mas mal levanta os olhos para ver os seis filhos. Passos adiante de sua casa, espera-lhe outra mulher, grávida; ele joga uma pedra no cachorro que ainda o segue; a grávida, que sequer foi cumprimentada, segue-o, caminhando com dificuldade num terreno pedregoso. Com esta falta de sutileza exemplar, ainda por cima acompanhada por um gosto iconográfico para lá de suspeito, ficamos sabendo o crápula sem afeto que é o pai desde o preâmbulo.

Há um argumento forte contra muito do que eu disse, e esse argumento foi por mim mesmo enunciado no começo deste texto. Em palavras ligeiramente distintas, disse – o que não é nenhuma novidade – que se tratava de um filme sem grandes intenções artísticas e autorais (sem o diretor tinha-as, então além de pusilânime é tolo), um mero produto de consumo ligeiro, melodrama para massas educadas pela teledramaturgia da Rede Globo. Adianta chutar um morto? Adianta escavar num ponto onde, de antemão, sabemos que não vai jorrar nada? Digo que sim, e aponto a razão: Lula, o filho do Brasil é o filme que vai representar o Brasil no Oscar.

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