UMA CANÇÃO DE VERLAINE (Alfredo Werney)
CANÇÃO DE OUTONO (Paul Verlaine)
Tradução: Guilherme de Almeida
Estes lamentos
Dos violões lentos
Do outono
Enchem minha alma
De uma onda calma
De sono.
E soluçando,
Pálido, quando
Soa a hora,
Recordo todos
Os dias doudos
De outrora.
E vou à-toa
No ar mau que voa,
Que importa?
Vou pela vida,
Folha caída
E morta.
“Música acima de qualquer cousa”. Este legado verlainiano geralmente é compreendido de maneira superficial. Para muitos leitores apressados, e até mesmo para alguns críticos renomados, a musicalidade de sua poesia se dá apenas pelo fato de o escritor francês primar pela melodiosidade e pela fluência sonora do verso. Entendo que a questão é mais profunda do que aparenta ser: a música em Verlaine é uma concepção de mundo; uma maneira de compreender as coisas por um viés menos conceitual e intelectual; uma arte que fundamenta sua poesia e não tão-somente ajuda compreendê-la melhor.
Se Debussy, também francês, tirou a dramaticidade e a narratividade da música ocidental, com seus acordes impressionistas, com suas texturas suaves e refinadas; Verlaine o fez na poesia. A poesia verlainiana não quer narrar, não quer explorar e investigar as camadas profundas da nossa psique, nem ser retórica. Ela quer ser apenas uma poesia de texturas musicais leves, de impressões sobre a natureza. Trata-se de uma poesia que capta as nuances das cores, dos sons, dos ritmos, dos sabores. Nesse sentido, sua poesia pode ser comparada a uma tela de Monet: traços leves que captam as nuanças das cores sem buscar construir figuras de contornos definidos. Tudo é pura sensação. Nada pode se pautar em conceitos rígidos e definidos.
Interessante notar a conexão que há entre os três artistas franceses (Paul Verlaine, Debussy, Monet). Eles compõem uma arte muito peculiar, centradas nas impressões e nas diferentes sensações que o mundo nos transmite. Não seria exagero dizer que não há muita diferença entre ler um poema de Verlaine, observar uma tela de Monet e ouvir uma peça de piano composta por Debussy.
O poema “Canção de Outono”, na tradução isotópica de Guilherme de Almeida, serve como exemplo para compreendermos um pouco do universo da poesia de Verlaine. O escritor procura captar as sensações transmitidas pelo Outono, a estação da passagem das coisas, da melancolia e do fechamento. Sua linguagem é rica em efeitos melódicos e rítmicos. Observemos o tom grave da melodia poética na primeira estrofe, atingido através da nasalização da vogal “o”.
Estes lamentos
Dos violões lentos
Do outono
Enchem minha alma
De uma onda calma
De sono.
Dos violões lentos
Do outono
Enchem minha alma
De uma onda calma
De sono.
As palavras “violões”, “outono”, “sono”, “onda” possui uma sonoridade fechada, devido à nasalização, e por isso mesmo se coadunam muito bem com a idéia de “outono” como estação do fechamento interior. Guilherme de Almeida, de maneira inteligente, traduziu a palavra violon (que significa literalmente violino) por violões. A palavra violino indubitavelmente quebraria toda a cadeia melódica e rítmica do poema, pois a vogal “i” é muito aguda para expressar o tom grave do texto poético.
Na segunda estrofe do poema, observamos que a sonoridade das palavras se “abre” um pouco mais, devido à assonância construída com vogais abertas:
E soluçando,
Pálido, quando
Soa a hora,
Recordo todos
Os dias doudos
Pálido, quando
Soa a hora,
Recordo todos
Os dias doudos
De outrora.
Esta sutil modulação de tom pode ser observada também no sentido do texto: trata-se do momento em que o eu-lírico recorda dos seus dias, ou seja, um momento em que as coisas começam a se tornarem mais claras na memória. Notemos que o tradutor opta, mais uma vez de maneira certeira, por utilizar a forma arcaica “doudo” em vez de “doido”. No que se refere à melodia, certamente o uso da vogal “i” não soaria com a mesma fluência da vogal “u”. Além disso, perder-se-ia a importante rima “todos/ doudos”.
Na última estrofe, que segue a mesma unidade melódico-rítmica e a mesma disposição das rimas (AABCCB), observamos uma fluência musical que sugere o leve balanço das folhas de uma árvore (no poema original em francês este efeito fônico é bem mais nítido):
E vou à-toa
No ar mau que voa,
Que importa?
Vou pela vida,
Folha caída
E morta.
Nessa estrofe o poeta francês opta por uma sonoridade sem nasalizações (exceto na palavra “importa”), o que engendra uma melodia mais aberta e clara. O uso da vogal “i” faz com que a melodia se torne mais aguda e menos fechada. Importante percebermos neste poema os três níveis de melodia elaborados por Verlaine. Na primeira estrofe percebemos uma melodia fechada e grave. Na segunda estrofe uma melodia menos fechada e na última uma melodia aberta e mais aguda. Estas constantes estéticas estão presentes de forma ostensiva na poesia verlainiana. Possivelmente essas são as principais marcas do poeta.
A poesia de Verlaine influenciou toda uma geração de poetas brasileiros, em especial os escritores simbolistas. Em relação à nossa poesia moderna, observamos muitos recursos na obra de Mário Quintana e Cecília Meireles, por exemplo, que estão em perfeita sintonia como o modus operande do escritor francês. O abandono da retórica, a sensação de leveza, o verso como uma unidade melódica e o sentido vago das coisas (sentido este levado a um segundo plano, já que a musicalidade torna-se preponderante) podem ser constantemente verificados na poesia de Quintana e Cecília. No fundo, o que o “príncipe dos poetas franceses” nos ensina é observar o mundo de uma maneira mais sensitiva, menos conceitual. Quando nos perdermos nas imagens e sons, nas texturas leves, nas flutuações melorrítimicas das frases e na atmosfera de vagueza das coisas, começamos a entender a poesia de Verlaine.
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