segunda-feira, 4 de julho de 2011




BARRAVENTO, DE GLAUBER ROCHA 
(Wanderson Lima)

Glauber Rocha é a grande reserva estética do cinema brasileiro. Quanto mais longe dele, mais pobre ficará nosso cinema. Seja para negá-lo, seja para afirmá-lo: é preciso ver e dialogar com Glauber Rocha. A lição glauberiana, aliás, não deve se restringir aos cineastas. Sua obra, pela dignidade dos seus erros e pela grandeza dos seus acertos, precisa ser meditada por qualquer brasileiro minimamente cultivado; como poucos, Glauber soube penetrar no drama individual, político, ético, metafísico associado à contingência de se ser brasileiro. A universalidade de Glauber nasce, a propósito, de um profundo sentimento de identificação com os nossos dilemas, com a nossa condição (como se dizia na época) terceiromundista: seu cinema alegoriza nossa história, construindo um discurso que dramatiza um dilema que é político e cósmico, que pertence à aldeia e ao mundo, que evoca a história e a profecia, a política e a religião. O cordel, o candomblé e o catolicismo popular; o marxismo de Bloch e o de Marcuse; o anticolonialismo de Sartre e Fanon; o tragicismo barroco e o revolucionarismo romântico; Os sertões e Grande Sertão: Veredas; Eisenstein e Rossellini; todo este caldeirão fora reelaborado por Glauber numa unidade complexa, tensa, que faz de sua obra um monumento singular na história do cinema.


Este monumento singular que é a obra glauberiana tem seu ponto de partida, em termos de longa-metragem, com Barravento (1962). O atrativo deste filme não se assenta em nenhuma curiosidade histórica: trata-se já de uma obra madura, de alguém que visivelmente absorvera as lições de Eisenstein, Rossellini e Jean Renoir (o realismo poético deste último é muito evidente no filme) e já começara a elaborar sua própria síntese. Há neste primeiro Glauber uma preocupação com a elaboração do plano, no sentido de extrair poesia e simbolismo, que o Glauber posterior rechaçaria como preocupações do “cinema burguês”. Algumas cenas, não poucas, podem ser selecionadas para qualquer antologia de belas tomadas do cinema nacional. Numa delas Glauber filma um desafio de capoeira variando closes em ângulos insólitos com tomadas à distância, mimetizando o ir e vir da dança da capoeira; noutra, emulando Eisenstein, assistimos a uma montagem paralela de uma sagração e uma profanação: enquanto num terreiro de umbanda um galo é sacrificado num rito de batismo, nas areias de uma praia noturna Aruã, pescador de “corpo fechado”, profana seu pacto com Iemanjá ao manter relações sexuais com uma mulher. Glauber começou a filmar Barravento com apenas 20 anos, em 1959, na comunidade negra de pescadores Buraquinho, a alguns quilômetros de Salvador; porém apenas em 1962 o filme foi montado no Rio, com indicações de Glauber, por ninguém menos que Nelson Pereira dos Santos.



Barravento, como explica o letreiro de abertura do filme, "é o momento de violência, quando as coisas de terra e mar se transformam, quando no amor, na vida e no meio social ocorrem súbitas mudanças”. O “barravento” do filme de Glauber emerge da tensão entre o tradicionalismo religioso e o revolucionarismo político. A comunidade de pescadores Buraquinho ainda vive no tempo cíclico do mito, cultivando seus deuses ligados a elementos da natureza. Os homens pescam; as mulheres rezam e cuidam dos afazeres domésticos. Há um pescador identificado como Mestre, líder dos demais, e Aruã, “filho” da rainha do mar, Iemanjá, elo entre os homens e os deuses. Os dois exercem uma autoridade natural perante os demais. As trocas da comunidade com os citadinos são escassas, mas significativas num ponto essencial: a enorme rede com que pescam é arrendada, e eles são vergonhosamente explorados pelo arrendador, ficando apenas com 10% do peixe capturado. Apesar disso, o Mestre, voz do tradicionalismo alienado, abafa qualquer revolta.



Após o letreiro de advertência, a câmera apanha um céu de nuvens gordas, uma praia deserta e um negro sorridente tocando música de candomblé num atabaque, como a sugerir a unidade cósmica, naquela comunidade, entre a natureza e o homem. Passam-se os créditos e a imagem primeira mostra a vida comunitária que ali se desenvolve: numa tomada de moldura claramente mítica, pescadores unem suas forças para puxar uma enorme rede de pesca. Logo em seguida, ao som de berimbau e de uma voz que entoa algo como “Cala a boca, moleque”, vem aos saltos por um terreno pedregoso à beira mar um negro vestido à maneira de malandro e com o gingado típico desta figura. Está instaurado o conflito: o malando citadino que vem chegando é Firmino, e vem à sua antiga comunidade como porta-voz iluminista, trazendo a luz do homem esclarecido contra as superstições e o conformismo. Seu mister é desmitificar o “filho” de Iemanjá Aruã e acordar à comunidade para sua condição de explorados.



A crítica da época, e mesmo a de hoje, tende a identificar Firmino à perspectiva de Glauber e a ler o filme como uma denúncia da alienação religiosa. Esta leitura, como demonstrou o sempre lúcido Ismail Xavier, é bastante parcial e encontra apoio em passagens seletivas do filme, como a que Firmino profere um discurso indignado contra a passividade dos pescadores diante do cinismo do arrendador da rede. “Trabalha, cambada de besta, trabalha! Preto veio para esta terra foi pra sofrer! Trabalha muito e não come nada! Menos eu que sou independente e já larguei esse negócio de religião. Candomblé não resolve nada, nada, não! Precisamos é lutar, resistir!”, diz enfaticamente Firmino. O fato de a leitura do filme como crítica da religião popular se apoiar num só personagem e em passagens seletivas do filme não é o maior problema; mais grave nesta leitura é o apego exclusivo ao enredo e sua negligência à imagem e à música, pois Barraventoé constituído sob uma contradição flagrante: enquanto o enredo critica, imagem e som se deixam irradiar pela cultura afro-brasileira, absorvem os valores daquela comunidade, transformam traços daquela cultura em estilemas (como na cena da capoeira a que fiz alusão). Numa visão de dentro, sensível à textura do discurso e não apenas ao enredo, como ensina Ismail Xavier, podemos afirmar que Barravento não é apenas um filme sobre o negro mas sim o filme negro. A câmera deBarravento, de uma sensibilidade etnográfica inabitual no nosso cinema, registra a pesca, o samba de roda, a capoeira e o candomblé de uma perspectiva que pode ser classifica de muitas maneiras, exceto de fria e distanciada. Muitas vezes, a câmera se agrega ao tema, mimetizando-o. Também em variados momentos o registro etnográfico torna-se um interesse em si, distanciado da funcionalidade narrativa.



Não sugiro que Barravento seja uma apologia da cultura e religiosidade populares. Apenas avento a hipótese, numa leitura que ratifica a revisão que Ismail Xavier fizera de seus próprios escritos, da existência de uma tensão entre as camadas discursivas de Barravento que complexificam as relações que ali se estabelecem entre política e religiosidade popular e torna muito mais problemática a posição ideológica do diretor. É preciso observar que a mudança de mentalidade de Aruã, no desfecho, quando desmoralizado por Firmino, o faz afastar-se da comunidade e não tornar-se um líder dela; Glauber não se deixa levar pelo otimismo antropológico do iluminista, considerando a saída das “trevas da superstição” como a suprema conquista do homem. (Firmino também se vai sem se tornar líder de nada: pelo menos de imediato, não se trata de uma troca de uma ordem injusta por uma ordem justa. Mas, é claro, Aruã promete voltar da cidade...). Em Jorge Amado, no romance Jubiabá, o candomblé não é depreciado mas o protagonista só se plenifica como homem e torna-se útil socialmente quando aprende a “rezar” pela cartilha revolucionária; Glauber, em Barravento, concorda em linhas gerais com Amado mas domina o otimismo em relação ao salto ontológico de seu personagem, ou seja, Glauber mantém uma distância prudente do otimismo maniqueísta-revolucionário. Isto é, com pouco mais de 20 anos Glauber já conhecia os riscos da doutrinação cega e da redução dos problemas humanos a uma escala estritamente política – o que não impediu que muita gente enxergasse no cineasta baiano, uns com temor e outros com franca aprovação, a caricatura do revolucionário latino-americano.



Sabemos que estas duas forças – metafísica religiosa e revolucionarismo político - confrontadas em Barravento conviverão numa tensão encarniçada em Glauber e seus filmes “barrocos” até que em O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, de 1969, a cultura e religião populares passam a ditar o tom do filme e guardam em si a semente de uma possível, e desejável, transformação social.

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