MÍSTICA E POESIA: UMA ENTREVISTA COM RODRIGO PETRONIO
Wanderson Lima: Existem pressupostos ou princípios que perpassam de forma horizontal e homogênea as experiências místicas?
Rodrigo Petronio: Sua pergunta é difícil, pois nos leva a indagar sobre as relações possíveis entre universalismo e pluralismo religioso. Talvez possamos dizer que a mística é o lugar em que as verticalidades heterogêneas se encontram. Por isso, a tarefa comparativa, nesse caso, seria tão mais apropriada quanto mais demarcasse a diferença existente entre diversas práticas e experiências, de modo a não diluir uma diferença em outra ou ambas, em uma unidade formal abstrata, insuficiente empiricamente. É isso o que propõe François Julien quando fala da comparação entre culturas mais como um procedimento de ressaltar diferenças do que de encontrar semelhanças. Sinto que o ecumenismo religioso de Raimon Panikkar também segue esse preceito. O espaço horizontal seria o das religiões, das instituições, dos fluxos, das trocas, em outras palavras, o espaço da minimização das práticas teológicas, para usar o conceito de Paul Evdokimov. Diferente da mística que, muitas vezes, no interior das ordenações e das tradições, age em um sentido de maximização da experiência religiosa, ou seja, esticando o tecido da hermenêutica sagrada até o seu quase rompimento. No espaço horizontal se dá a dimensão catafática, na qual as diferenças são postas sob a luz das relações que estabelecem mutuamente entre si. Nele, o dizível impera, nomeia, categoriza e domestica a experiência. As noções se estabilizam. A epifania ganha nome. O conceito silencia o furor. As definições buscam a concórdia. Esse espaço está mais próximo da comunicação ritual e da sincronicidade teológica entre religiões ou crenças distintas do que da experiência mística, nesse sentido. Porém, sob outro ponto de vista, a mística tampouco se reduz à heterogeneidade e aos particularismos de suas situações históricas, porque ela pretende tratar do Incondicionado. Este pode levar o místico não só para além de sua tradição, mas inclusive para além de outras tradições que não a sua. É nesse ponto que os diálogos inter-religiosos demasiado pacifistas se mostram insuficientes. Por outro lado, há que se tomar cuidado ao universalizar o sentido da mística. Nesses termos, é bastante oportuna a definição de John Hick, segundo a qual a unidade da mística não estaria em uma substância una, idêntica a si mesma, representada de modos diversos, mas sim em uma impossibilidade de representação de qualquer substância, ou seja, no inefável. O inefável, para Hick, é o Real. Esse Real é sempre heteronômico, é sempre Outro que se manifesta na consciência e aniquila a possibilidade de sua nomeação. Obviamente, o Real não é entendido em termos empíricos, psicológicos ou sociológicos, mas sim propriamente transcendentais. O Real é tudo o que escapa à lógica da representação, e seria ele o grande ímã do impulso místico das diversas tradições, sejam elas orientais ou ocidentais. Nesses termos, a mística seria a materialização negativa (em termos dialéticos) de uma pura positividade (em termos divinos) que emerge do interior da linguagem e força os seus diques. Acho a definição de Hick bastante sugestiva, pois ela não nos propõe uma substância universal, passível de ser confiscada por um discurso hegemônico no âmbito das religiões e das práticas simbólicas, mas sugere pelo contrário uma universalização formal e relativa, um horizonte comum de incomunicabilidade em direção ao qual toda a experiência mística caminha. Seria aquele polo superior da relação circular língua-realidade, estabelecida por Vilém Flusser, no qual a linguagem força o limite representativo de sua própria realidade, ou seja, de si mesma, à medida que, para Flusser, a língua cria a realidade e esta não existe fora da língua. Estaríamos aqui em um universalismo apofático, em uma universalidade da impossibilidade de dizer. Acredito que essa impossibilidade de dizer possa ser a unidade formal da experiência mística. Esse valor negativo fornecido pelo apofatismo parte da seguinte premissa: o que se quer dizer está para além da trama lógica da linguagem do dizível. Pode-se verificar a ressonância dessa definição em diversas tradições místicas. Desde Pseudo-Dioniso Areopagita, que formulou a noção mesma da via negationis, da via negativa, passando pelas místicas medievais e as beguinas, como Hildegard von Bingen, Marguerite Porete, Mechthild de Magdeburg,Angela de Foligno, Catarina de Siena, Hadewijch de Antuérpia até a mística renana e desta a São João da Cruz e Santa Teresa d’Ávila, esse fio invisível da conexão negativa da mística cristã permanece intacto. Essa premissa negativa também pode ser encontrada com frequência também na tradição sufi, na mística islâmica da escola iluminativa, em vertentes do budismo, no tantrismo, no xivaísmo e no taoísmo. Mas a definição negativa para todas essas tradições pressupõe alguma positividade de fundo. A mística negativa não é uma negação do Real, mas sim a manifestação do Real é que desativa qualquer possibilidade de dizê-lo de modo intramundano.
Wanderson Lima: Que liames se pode estabelecer entre mística e poesia?
Rodrigo Petronio: Da mesma maneira que a religião implica a totalidade do sentido e a filosofia envolve a totalidade do pensamento, a poesia é uma expressão da totalidade da linguagem. No caso, a mística é uma relação muito específica no interior das tradições religiosas e também se vale da linguagem de modo especial, para narrar o caminho de ascese. Nesses termos, haveria um profundo paralelismo e diálogo entre poesia e mística. Se formos analisar de modo arqueológico, provavelmente chegaremos a uma origem comum, por meio do xamanismo ou de técnicas arcaicas de ascese e êxtase.
Wanderson Lima: Sinteticamente, qual o legado da mística de Teresa d’Ávila e Juan de la Cruz?
Rodrigo Petronio: Ambos deixaram uma herança valiosa, tanto poética quanto mística e filosófica. Muero porque no muero e noche oscura devem estar entre os maiores oximoros da história da poesia. Apenas ao morrer-se em vida salva-se a vida eterna, de tal modo que o simples ato de morrer ganha uma simultaneidade ontológica com a vida. Não morrer é perder-se para a morte, que se torna, paradoxalmente, salvífica. Da morte à morte corre um rio transparente, a mais pura univocidade que transforma ambas em formas igualmente verdadeiras de testemunhar uma impossibilidade vital. Morro porque não morro, ou seja, porque se não morresse, a eternidade em vida me afastaria do desígnio de criatura e, por isso, me afastaria de Deus. Mas também morro porque, em Deus, sou imortal, e tudo o que em mim me dá o sentido do perecimento só o faz à medida e à proporção que me ancoro em algo que não está submetido ao regime temporal e à efemeridade, porque há em mim uma substância divina que mede o compasso do tempo que me devora e me destrói, inexoravelmente. Há, portanto, dois sentidos biunívocos, mas diametralmente opostos. Um primeiro descendente. Sua hipótese é a da existência de um absoluto aniquilamento de todo ser que não participe da morte, ou seja, que não participe daquilo que lhe funda enquanto criatura. Outro, ascendente: apenas mediante a presença de uma centelha divina de imortalidade podemos ter acesso à natureza mesma da impermanência. Em um verso, Santa Teresa descortina a engrenagem mais complexa e avassaladora da mística: a absoluta reversibilidade entre criador e criação. Se não se nega Deus, pois isso seria um contrassenso, propõe-se por outro lado um modo radicalmente diverso da relação com Deus. Mais participativo do que contemplativo, como diz Angelus Silesius, em um belíssimo dístico, o místico sabe que, sem ele, Deus se destruiria. Dessa reversibilidade entre criador e criatura o místico retira a substância de sua obra, que é o seu próprio testemunho-testamento. Tal como na rosa que é uma rosa que é uma rosa, a tautologia é a redenção do Nada pela linguagem. Na linguagem, o Nada se materializa como possibilidade do discurso por meio da tautologia. É esse apofatismo que abre a clareira de sentido no relâmpago das palavras, e produz o maravilhamento poético.
Wanderson Lima: O frescor e a atualidade da lírica mística de Teresa d’Ávila e Juan de la Cruz surpreendente mais de um leitor. Leo Spitzer vislumbrava essas qualidades na capacidade desses poetas de expressar a experiência mística por meio de imagens do reino sensível; Dámaso Alonso apontou que o procedimento de ambos consistia muitas vezes no que hoje chamaríamos de “apropriação paródica” da poesia amatória profana, logrando, segundo Alonso, uma “divinização da técnica”. A seu ver, há de fato este frescor e essa atualidade? Onde, na lírica moderna, podemos atestar os rastros de Teresa d’Ávila e Juan de la Cruz?
Rodrigo Petronio: Vejo de fato esse frescor, sim. Não é por acaso que muitos grandes poetas do século XX retroagiram aos místicos como forma de aggiornamento da linguagem poética. Basta lembrar o trabalho de Eliot com os metaphysical poets. Spitzer é sempre muito agudo. Concordo com esse primado da imagem como forma de dar acesso sensível ao invisível. Quanto a Dámaso Alonso, li praticamente toda sua obra. É o grande especialista em Góngora e um crítico extraordinário. Gosto dessa definição, porém sinto que ela se restringe à dimensão técnica e genérica, diz respeito ao caráter eminentemente estilista da abordagem de Dámaso, bem próprio de sua época e importante como estratégia de emancipação da poesia de tantos grilhões sociológicos. Mas sinto falta, nesse tipo de abordagem, de questões propriamente metafísicas, sem as quais não haveria o polo virtual de atração que faculta esse esgarçamento entre linguagem e sentido, e que é o coração da poesia mística.
Wanderson Lima: A abordagem patológica das experiências místicas de Teresa d'Ávila e de Juan de la Cruz, em geral reduzidas a perturbações de natureza sexual, foi muito forte na primeira metade do século XX e, em alguns meios, ainda persiste. Recentemente, por exemplo, deparei-me com um estudo acadêmico de quase trezentas páginas que se centrava na depressão de/em Juan de la Cruz (intitulava-se tal estudo “Mística y depresión: San Juan de la Cruz”). O que, a seu ver, tais abordagens patologizantes dizem sobre nosso tempo?
Rodrigo Petronio: O tema é muito vasto, extremamente complexo e difícil de abordar. Há muitos pontos de contato entre a psicologia e religião. Pontos de contato profundos, até se chegar a uma zona de indiscernibilidade entre uma e outra dessas dimensões humanas. A relação entre transtornos psíquicos e revelação profética é algo que vem desde a Antiguidade, sob a forma da teoria dos humores e nas análises do papel exercido pela melancolia no contato da consciência com a substância divina e na atuação dos criadores de gênio. Joshua Heschel escreveu uma fenomenologia da consciência profética baseada justamente nos graus de alteração conscienciológica produzido pelo pathos da atuação de Deus no profeta. No caso da mística, há os estudos clássicos de Michel de Certeau. Há muitos relatos, tanto no paganismo antigo quanto no mundo monoteísta, das relações às vezes necessárias entre a consciência mística ou profética e um grau de transtorno que se aproxima da loucura. No judaísmo há até parábolas abordando esse tema, muitas vezes bem-humoradas, segundo as quais a loucura seria uma das consequências da visão de Deus. Em resumo: acredito que essas correlações podem ser feitas, desde que se preservem especificidades da experiência mística que são irredutíveis ao discurso moderno liberal da psicanálise e da psiquiatria. A vitória do psíquico sobre o pneumático, da psicologia sobre a religião é um atestado das perdas e ganhos da secularização do mundo moderno. O inconsciente acabou se tornando a mais poderosa mitologia que o mundo burguês criou para destronar Deus. Mas tal atuação pode ser redutora, distorcendo os fenômenos observados à luz de conceitos que dizem mais da psicanálise do que da mística. Gosto muito de psicanálise e não tenho nada contra o discurso produzido por essa nova mitologia. Aliás, suspeito que ele seja importante para a formação dos resíduos das religiões e, quem sabe, da mística do futuro. Mas essa análise retrospectiva deve sempre tomar cuidado para não se erigir como um novo neocolonialismo teórico do passado ou como um narcisismo conceitual que trabalha no campo de conforto. Ao invés de fazer o caminho inverso e deixar a vertigem mística transtornar e transgredir a realidade presente, essa atitude seria apenas uma forma degenerada de moralidade pública burguesa que, no limite, estaria higienizando e domesticando a religião, ao reduzi-la à soma de pequenas neuroses privadas, em quase tudo insignificantes e, no limite, desprezíveis.
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Rodrigo Petronio é escritor, professor e editor. Professor e coordenador da Academia Internacional de Literatura (AIL) e do Centro de Estudos Cavalo Azul. Autor dos livros: História natural, Transversal do tempo, Assinatura do sol, Pedra de luz, Venho de um país selvagem, entre outros.
Wanderson Lima é poeta e ensaísta. Professor de literatura da Universidade Estadual do Piauí – UESPI e doutorando em Literatura Comparada pela UFRN. Autor, entre outros, deReencantamento do mundo: notas sobre cinema (Amálgama, 2008), em co-autoria com Alfredo Werney.
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