OS SONS QUE VÊM DA RUA: AS CIDADES E O DISCURSO
DA CANÇÃO POPULAR BRASILEIRA
(Palestra
apresentada no 13º SALIPI)
Alfredo Werney Lima
Torres (IFPI)
A música popular brasileira sempre esteve ligada, de alguma forma,
à ideia de cidade. O próprio conceito de MPB, como argumenta Carlos Sandronni
em seu importante ensaio “Adeus a MPB”, surge com a ideia de República, de
população urbana. Construir uma identidade brasileira foi uma das questões
centrais do período Republicano, sobretudo na época do nacionalismo da Era
Vargas. A música popular, como nos mostram pesquisas e estudos, não passou ao
largo desse debate: ela foi um dos elementos principais na invenção dessa
identidade.
O samba de Noel Rosa, na década de 30, foi o gênero que se
utilizou para representar nossa identidade cultural. A partir dele o Brasil
ficou conhecido mundialmente como “o país do samba”. O fato é que, desde os
primórdios, o conceito de música popular brasileira está fortemente associado à
cidade (“aos sons que vêm da rua”, como nos diz a canção Tem mais samba, de Chico
Buarque) e ao processo de urbanização do país. A própria história do samba
aponta para essa compreensão: o samba-de-roda da Bahia (dançado por negros) foi
trazido para o Rio de Janeiro na época da mudança de capital do país, em 1763.
Nesse processo o samba-de-roda, mais ligado às raízes culturais africanas do
candomblé, se mesclou com o maxixe (dança urbana do Rio) e com instrumentos do
choro carioca. Essa fusão é que gerou o samba urbano como conhecemos hoje.
No Brasil a canção se tornou “um lugar de mediações, fusões,
encontro de diversas etnias, classes e regiões” – como bem observou Marcos
Napolitano. Diferentemente de outros países de cultura europeia, a literatura
acadêmica se juntou a canção popular e formaram um laço indissolúvel. Isto se
deu principalmente a partir da eclosão da bossa nova na década de 60 e por meio
das imensas contribuições de Vinícius de Moraes, que uniu escritores eruditos
com compositores populares.
José Miguel Wisnik denominou esta associação entre alta literatura
e MPB de “uma nova forma de gaia ciência”. Isto é, a junção entre música
popular urbana e as Letras no Brasil se tornou uma espécie de “ciência alegre”,
de um fazer, ao mesmo tempo, espontâneo e cerebral. Nesse sentido,
compreendemos que a música popular não é apenas um artefato cultural que cumpre
com uma função estética específica, em geral associada à expressividade
corporal. A canção brasileira foi capaz de marcar identidades e de “inventar”
territórios e cidades.
É importante dizer que na presente comunicação entendemos “cidade”
na perspectiva de Roland Barthes e Nestor Canclinni. Esses autores nos mostram
que devemos buscar uma compreensão de cidade para além da ideia de espaço
físico, arquitetônico. É essencial entendê-la como “texto, trama de signos e
associação multicultural de narrativas”. Nesse sentido, vemos que vários
espaços urbanos brasileiros foram narrados e tramados, em grande parte, pelo
discurso da música popular.
Noel Rosa firmou a imagem do malandro carioca e de um
Rio de Janeiro urbano e moderno. Suas canções são uma espécie de crônica da
época, em que o sujeito lírico narra, de forma irônica e despojada, a vida
pelas ruas e morros da capital carioca. (Oi, enquanto existir o samba/ Não
quero mais trabalhar/ A comida vem do céu,/ Jesus Cristo manda dar!). Dorival
Caymmi contribuiu de forma decisiva, sobretudo através de suas canções
praieiras, para firmar a ideia de uma Bahia mítica, ainda não tomada pelo
conceito de civilização (É doce morrer no mar/ nas águas verdes do mar). Luiz
Gonzaga, em seu imenso projeto estilístico, criou toda uma região, o Nordeste.
Isto por meio de sua indumentária, de seus arranjos, do seu modo de cantar. Com
efeito, a imagem que se construiu de Nordeste se confunde com o próprio
universo cantado pelo sanfoneiro pernambucano: um lugar da saudade, da
religiosidade popular, dos “cabra valente” e “trabaiador”, da seca, da dor e da
miséria social. (A seca fez eu desertar da minha terra/ Mas felizmente Deus
agora se alembrou/ De mandar chuva/ Pra esse sertão sofredor/ Sertão das muié
séria/ Dos homes trabaiador).
O Tropicalismo, com sua estética espalhafatosa e moderna,
empreendeu uma leitura crítica ao nacionalismo e ao regionalismo estreitos e
fechados em si mesmos. Esse movimento artístico propôs a invenção de uma
estética pautada nas ideias antropofágicas oswaldianas, que buscava uma síntese
entre elementos locais e universais a partir de uma articulação tensa de
signos. Numa visão panorâmica, a cidade, nas canções tropicalistas, é múltipla,
contraditória, fragmentada. O rural e o urbano, Beatles e Luiz Gonzaga, os sons
da rua e do campo, do asfalto e do morro, a leveza da bossa e a explosão das
guitarras do rock – todo esse universo de contraste está presente no discurso
da Tropicália. Canções como “Tropicália”, “Sampa”, “Parabolicamará”, “Pela
internet” e “Alegria, alegria” são obras reveladoras da visão multifacetada e
alegórica de Caetano, Gil, Torquato e seus parceiros tropicalistas. (Do povo
oprimido nas filas, nas vilas, favelas/ Da força da grana que ergue e destrói
coisas belas/ Da feia fumaça que sobe, apagando as estrelas).
O Rock dos anos 80 no Brasil também não ficou fora desse
processo de leitura crítica da cidade. Várias bandas que fizeram sucesso nessa
época contribuíram para “fixar” ou “descontruir” imagens consolidadas de
determinadas cidades brasileiras. Podemos citar alguns dos grupos musicais mais
importantes: A Legião Urbana, com sua rica leitura de Brasília; Os “Titãs” com
sua leitura corrosiva e concreta da cidade de São Paulo; Os “Engenheiros do
Hawaí”, que sintetizaram, de forma feliz, aspectos do folclore gaúcho com a
expressividade do rock brasileiro; Os “Paralamas do Sucesso”, que procuraram
desconstruir a visão de um Rio de Janeiro como paraíso tropical, por meio de
letras musicais bastante lúcidas e elaboradas.
Não poderíamos deixar de mencionar, agora em uma época mais atual
da nossa cultura, o movimento “Mangue Beat”, principalmente Chico Science e a
banda Nação Zumbi. Através de seus hibridismos musicais e de suas fusões
do rock com o maracatu, esse movimento propôs uma leitura atualizada de
Recife-PE – que passou a ser interpretada como uma cidade pós-moderna, imersa
na lama e no caos urbano (Andando por entre os becos,/ Andando em coletivos/
Ninguém foge ao cheiro sujo/ Da lama do manguetown).
Após essa breve – e, certamente, incompleta – explanação sobre as
cidades a partir do discurso da música popular brasileira, cabe analisarmos
duas canções muito representativas, no que se refere à interpretação que elas
fazem do Brasil. As canções são Saudade de Itapoã (de autoria
de Dorival Caymmi), e Estação derradeira (de autoria de Chico
Buarque).
SAUDADE DE ITAPOÃ – Dorival Caymmi
Coqueiro de Itapoã, coqueiro
Areia de Itapoã, areia
Morena de Itapoã, morena
Saudade de Itapoã me deixa
Oh vento que faz cantiga nas folhas
No alto dos coqueirais
Oh vento que ondula as águas
Eu nunca tive saudade igual
Me traga boas notícias daquela terra toda manhã
E joga uma flor no colo de uma morena de Itapoã
Em “Saudade de Itapoã”, presente no disco “Canções praieiras”
(1954), estamos diante de uma Bahia pré-industrial, pré-moderna. Trata-se de um
lugar mítico, em que o homem convive em total harmonia com a natureza. O
sujeito lírico descreve a paisagem de forma encantada e clama pelo vento e pela
natureza. Notemos a ausência total de metáforas, de profundidade, e também de
conflitos psicológicos nas canções praieiras de Caymmi.
Nessas obras, o mar é sempre o mar físico, concreto. O tempo da
canção não é o da velocidade da informação, do ritmo intenso das fábricas e do
trânsito das grandes cidades, mas sim um tempo mítico, o tempo do ritual, como
no Candomblé e nas religiões de matriz africana. Em linhas gerais, as canções
praieiras de Caymmi são solares, concisas, claras, apolíneas. Parecem brotar do
nada, como nos disse Arnaldo Antunes e Chico Buarque. Elas revelam uma visão de
mundo antes do “desencantamento” provocado pela modernização (antes do spleen baudelairiano).
ESTAÇÃO DERRADEIRA – Chico Buarque
Rio de ladeiras
Civilização encruzilhada
Cada ribanceira é uma nação
À sua maneira
Com ladrão
Lavadeiras, honra, tradição
Fronteiras, munição pesada
São Sebastião crivado
Nublai minha visão
Na noite da grande
Fogueira desvairada
Quero ver a Mangueira
Derradeira estação
Quero ouvir sua batucada, ai, ai
Rio do lado sem beira
Cidadãos Inteiramente loucos
Com carradas de razão
À sua maneira
De calção
Com bandeiras sem explicação
Carreiras de paixão danada
Nessa canção de Chico Buarque (presente no disco “Francisco”, de
1987) vemos uma cidade não mais idealizada e mítica. Estamos diante de uma
leitura crítica do Rio de Janeiro, de um sujeito que tem consciência de todos
os problemas trazidos pelo processo de urbanização. O lirismo de Chico é,
portanto, crítico, enquanto o de Caymmi é nostálgico.
“Estação derradeira” expõe os variados contrastes que existem na
formação da cidade do Rio, que já não é mais a “cidade maravilhosa”. Nela está
inserido o ladrão, a lavadeira, a religiosidade, o prazer trazido pelo
carnaval, a loucura e a paixão desenfreada pelo futebol. Daí a forte metáfora
utilizada “civilização encruzilhada”, isto é, uma civilização composta por meio
de variadas narrativas, de variados signos, classes sociais e espaços. Essa
visão também está presente na imagem de “São Sebastião crivado”. Trata-se de um
santo que, crivado por flechas, simboliza o misto de sofrimento e dor. Além
disso, ele representa o sincretismo religioso da cidade do Rio, já que esse
santo está presente tanto em rituais católicos, como na Umbanda.
A canção de Chico sintetiza duas visões distintas acerca da cidade
do Rio: uma que vê o lugar através do olhar encantado do turista (Samba do
avião – Tom Jobim) e outra que vê a cidade a partir de um olhar de
denúncia e crítica política (Alagados – Paralamas do Sucesso).
Alagados (trecho)
Todo dia o sol da manhã vem e lhes desafia
Traz do sonho pro mundo, quem já não o queria
Palafitas, trapiches, farrapos
Filhos da mesma agonia
E a cidade que tem braços abertos num cartão postal
Com os punhos fechados na vida real
Lhe nega oportunidades
Mostra a face dura do mal
Samba do avião (trecho)
Minha alma canta
Vejo o Rio de Janeiro
Estou morrendo de saudades
Rio, seu mar
Praia sem fim
Rio, você foi feito pra mim
Cristo Redentor
Braços abertos sobre a Guanabara
Este samba é só porque
Rio, eu gosto de você
A morena vai sambar
Seu corpo todo balançar
Rio de sol, de céu, de mar
Dentro de mais um minuto estaremos no Galeão
Copacabana, Copacabana
Na canção de Chico Buarque a visão do sujeito lírico é, ao mesmo
tempo, encantada e crítica. O eu lírico aponta os problemas gerados pelo
processo de urbanização (como a violência), mas não deixa de exaltar o carnaval
e a paixão, sem explicação, pela vida. Essa ambiguidade do discurso da canção
representa a própria contradição inerente ao processo de formação da cultura
brasileira. A estação derradeira seria, dessa maneira, o prazer – ainda que
passageiro – proporcionado pelo carnaval. Em Chico Buarque, como observou
Santuza Cambraia Naves e Afonso Romano de Sant’anna, o samba é sempre uma forma
de romper o silêncio, é uma forma de redenção.
À guisa de conclusão, reafirmamos que a cidade é um tema que
sempre interessou a música popular brasileira. Ela está presente na própria
formação do discurso da nossa música. A MPB, tal como a conhecemos hoje, é uma
invenção urbana a partir das manifestações culturais afro-brasileiras. Esse
gênero musical se consolidou na história de nossas sonoridades e foi
responsável por “erigir” inúmeras cidades. O que seria da Bahia sem as
sonoridades de Caetano, Gil e Caymmi? E a Paraíba sem o suingue de Jackson do
Pandeiro e a sanfona de Sivuca? E o Rio de Janeiro sem Chico, Cartola, Noel,
Pixinguinha, Tom Jobim e a bossa nova? E Recife sem o frevo, o Manguebeat? E
São Paulo, sem os Demônios da Garoa, a vanguarda paulista, Os Mutantes e os
Titãs? E o Nordeste sem o baião de Luiz Gonzaga e João do Vale? Essas marcas
sonoras são muito mais do que rótulos e etiquetas comerciais. Elas são a
própria construção simbólica e discursiva da noção de “cidade”.
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