domingo, 8 de março de 2009

Melopoética



Melopoética: as relações entre música e literatura


Alfredo Werney


Musicalidade da poesia, poética musical, frase musical, poema sinfônico, música de palavras, texto musical, sintaxe melódica. Vários são os termos que procuram aproximar os dois sistemas de signos: a música e a literatura. Isto parece comprovar a premissa de que as artes – embora contendo suas especificidades – comunicam-se e, muitas vezes, complementam-se. Chegam mesmo a se fundirem, como é o caso da canção (palavra & música).

Jules Combarieu, em uma de suas instigantes reflexões, colocou que música e literatura provavelmente surgiram unidas. No mundo primitivo, canto, dança e poesia constituíam um único sistema. Devido à especialização progressiva das artes, literatura e música foram se afastando e se transformaram em sistemas de signos diferentes. A primeira passou a se voltar mais para o universo intelectual (conceitual), enquanto que a segunda se firmou dentro de um universo emocional (pré-conceitual). Contudo, estas artes se interpenetraram – uma guarda resquícios da outra. As figurações de som, a acentuação regular dos versos em um soneto, as repetições de estruturas, os ajustes na prosódia, não seriam uma prova da presença da música na literatura? Por outro lado, a organização da melodia em frases e períodos; a divisão de uma peça em introdução, desenvolvimento e conclusão; a notação musical; a tentativa de se representar e de narrar através de sons, não seriam uma marca que a literatura deixou na música?

Não se trata, todavia, de afirmar que “emoção” e “intelecto” são universos excludentes, tampouco fenômenos estanques. Nesse sentido, as investigações de Solange Ribeiro atingem um ponto importante: música e literatura são artes que procuraram sempre transcender seu elemento natural. A música, mais abstrata e voltada para o sensível, procurou atingir o inteligível. A literatura, mais inteligível e capaz de criar conceitos, procurou atingir o incognoscível, as sensações primeiras, “a relativa pureza da abstração” (termo de Solange Ribeiro). Trata-se do eterno combate entre representação/apresentação. Uma arte com grande capacidade de representar, como é a literatura, se põe a apresentar o fenômeno em vez de explicá-lo. Uma arte com grande poder de abstração e imaginação, como é a música, se põe a representar eventos.

O “poema sinfônico” pode nos ajudar a compreender de maneira mais substancial as considerações feitas acerca dessa influência mútua entre as duas artes. Surgido no século XIX, em pleno desenvolvimento do Romantismo musical, o poema sinfônico é uma peça musical que se empreende a narrar e representar eventos extra-musicais. Trata-se, em outros termos, de se tentar traduzir para a música o espírito de uma obra literária – uma demonstração da influência da literatura sobre a música.

Somos seduzidos a afirmar que a música exerce uma força ainda maior sobre a literatura. Segismundo Spina, imbuído de certo exagero, ressalta em suas pesquisas a superioridade da arte dos sons em relação à arte da palavra. Para ele “as deslocações prosódicas, a inserção de vogais, os melismas, a estropiação das palavras, a inobservância da propriedade vocabular e da sintaxe, as elipses e as licenças poéticas” servem para demonstrar a superioridade da melodia e do ritmo com relação à letra. De certa maneira, estes eventos, se não confirmam a superioridade da música, pelo menos revelam que a literatura se adaptou a diversas técnicas da música.
Faz-se importante que citemos um trecho de “Cadeira de balanço”, de Mário Quintana, para percebermos a música na literatura:


Quando elas acordam
Do sono se espantam
Das gotas de orvalho
Nas orlas da saias
Dos fios de relva
Nos negros sapatos
Quando elas acordam
Na sala de sempre
Na velha cadeira
Em que a morte as embala...


Neste pequeno trecho é possível percebermos que o efeito musical ocupa um lugar central na construção do poema. Trata-se de um momento em que a poesia se transforma na própria coisa representada. Não é difícil percebermos que em “Cadeira de balanço” Mário Quintana conseguiu nos transmitir, com palavras, a rítmica e a sonoridade de uma cadeira que se balança e pára. A parada corresponde às reticências. O ritmo, de acentuação binária, nos leva realmente a experimentar o vai-e-vem de uma velha cadeira de balanço. Não há explicações sobre o objeto “cadeira”, mas sim a “música” que esse objeto projeta.

Um poeta como Cruz e Sousa, por exemplo, se torna pequeno se nos propusermos apenas averiguar o “inteligível” de seus poemas. Não significa que sua poesia seja desprovida de riqueza cognitiva, mas é que esta não está pautada numa sintaxe lógica. Sua poesia quer atingir o nível de abstração e sugestão da música:

Ah! Lilases de Ângelus harmoniosos,
Neblinas vesperais, crepusculares,
Guslas sementes, bandolins saudosos,
Plangências magoadíssimas dos ares...

Serenidades eterais de incensos
De salmos evangélicos, sagrados,
Saltérios, harpas dos azuis imensos,
Névoas de céus espiritualizados.
As palavras em “Ângelus” estão soltas, como acordes dedilhados em uma harpa. Elas se ligam uma à outra menos pelo sentido do que pela sonoridade. Isto tudo gera uma harmonia, pois o som de uma palavra fica reverberando na outra: um efeito pouco comum, já que não são possíveis sons simultâneos em um poema. Porém, a técnica de Cruz e Sousa possibilitou quase que uma verticalização sonora (na música nomeamos este elemento de harmonia).

Uma investigação mais abrangente nos revelará que todas estas questões que ora tratamos estão intimamente conectadas com a dimensão social e histórica do fenômeno literário. O problema é que os estudos acadêmicos tendem a separar, por exemplo, sintaxe e ritmo, sentido do texto e musicalidade do texto, estrutura e conteúdo. No caso de Cruz e Souza, um estudo sobre Simbolismo e a música do Romantismo provavelmente nos ajudaria a compreender melhor a sua poesia. Isso cabe a quem se propõe a se adentrar no universo da melopoética (área que estuda a relação entre literatura e música): examinar como se coadunam o sentido, a musicalidade e as contingências sócio-históricas em um texto literário. Entender que a musicalidade de um poema, de um romance ou de um conto está somente em sua estrutura é não compreender a complexidade do fenômeno literário.

Há ainda uma relação possível entre o texto e a música, que é quando eles se fundem. A ópera, a canção e o lied são exemplos dessa fusão. No Brasil, a relação entre a poesia moderna e música popular foi orgânica. Dificilmente compreenderemos os grandes movimentos da nossa música popular sem uma pesquisa no campo literário. O Tropicalismo, como exemplo, reorganizou o modernismo de Oswald de Andrade e a poesia concreta de São Paulo. Se observarmos uma letra de Chico Buarque ou Caetano Veloso, veremos que há nela uma preocupação formal que está para além de uma mera expressão de sentimentos do cancionista. Estes artistas não querem somente adaptar um texto a uma melodia pré-existente, mas sim construí-lo com minúcias e simbolismos sonoros, ritmo e sintaxe expressivos, estruturas balanceadas, dentre outros recursos que enriquecem a língua.

São várias e complexas as relações entre música e literatura. E é importante atestar que a análise musical de um texto literário não é suficiente para se compreender sua riqueza de símbolos. A leitura de uma obra musical a partir da utilização de ferramentas do estudo da linguagem também não é suficiente para entender o universo da arte dos sons. Contudo, quando se estuda a relação entre esses dois sistemas de signos, passamos a ter uma visão muito mais abrangente sobre cada um deles. Começamos a entender que a música não é apenas uma arte que expressa emoções e está tão-somente nas camadas profundas do inconsciente, da abstração. A música é plurissignificativa e se organiza estruturalmente de maneira parecida com a linguagem verbal. Inversamente, começamos também a entender que a literatura está para além do universo da inteligência, da cognição. Ela excita nossos sentidos, desperta nossa imaginação criadora e nos aproxima de um universo onde a coerência apolínea cede lugar à embriaguez dionisíaca.

4 comentários:

  1. Muito bom. Seja bem-vindo ao mundo dos blogueiros.

    ResponderExcluir
  2. Olá, Alfredo! Parabéns pelo artigo. Muito bom mesmo. Veio ao encontro da pesquisa que estou fazendo sobre a inter-relação literatura e música. Além de Solange Ribeiro, gostaria que vc, por favor, me informasse a fonte de onde coligiu tais informações, ou, ainda, caso sejam de sua própria autoria, gostaria que me enviasse os créditos para citação.

    ResponderExcluir
  3. olá! obrigado por visitar o blog. vc tem que deixar o seu e-mail e nome, pois posso te enviar um artigo mais completo que escrevi sobre esse interessante assunto. vc é de onde?
    minha base é a Solange Ribeiro, além de Luiz Piva, Luiz Tatit e Segismundo Spina. além de outros...tenho outros artigos sobre esse assunto.
    meu e-mail é esse alfredoviolao@hotmail.com

    um abraço!

    ResponderExcluir
  4. algumas idéias do texto são realmente minhas. Mas como ninguém é original totalmente, sempre m e ancoro em outras pesquisas. estas idéias estão mais bem desenvolvidas no artigo Música na literatura: extratos musicais na construção de sentido do texto poético. está na revista desenredos (www.desenredos.com.br)

    um abraço

    ResponderExcluir