
A trilha de Cipriano: tensão e polifonia.
(Alfredo Werney)
Com seu velho acordeon Vicente executa acordes aleatórios. Na fluidez dos movimentos do seu instrumento, que é a extensão visual e musical da personagem, ele cria o seu próprio mundo sonoro. De outro lado, trancado dentro de sua solidão, o velho Cipriano sonha e busca a morte. O seu silencio mortal contrasta com a polifonia que entrecruza sua jornada. Vida e morte, som e silêncio compõem esta paisagem barroca.
I
Rezas, incelências, benditos, sussurros femininos, timbres metálicos irreconhecíveis, sinos, ostinatos, efeitos percussivos, aboio e singelas melodias. Esta é, em suma, a paisagem sonora[1] de Cipriano (2001), considerado o primeiro longa-metragem do Piauí.
Nas primeiras décadas do cinema sonoro, a música geralmente desempenhava a função de apoiar a narrativa, acentuando momentos de clímax e resolvendo as tensões harmônicas nos instantes de repouso. Em experiências mais contemporâneas, a música do cinema conseguiu emplacar um discurso mais pessoal e, desta forma, acrescentar mais informações às imagens visuais. Em Cipriano estamos diante de uma trilha sonora que apóia a linguagem visual, mas também especula e constrói efeitos particulares. Não se trata de uma intervenção sonora pleonástica que simplesmente repete, sem uma intenção estética definida, o discurso das imagens.
A composição audiovisual de Cipriano oscila entre momentos de harmonia / desarmonia, convergência / divergência. O fato é que som e imagem, mesmo sendo elementos de diferente constituição material, fazem parte da construção do mesmo fenômeno. Em outros termos: expressam conjuntamente, numa espécie de tensão balanceada, os símbolos do filme. Os movimentos de câmera, a narrativa, a montagem e diálogos são estruturados em movimentos circulares. Na banda sonora, da mesma forma, os sons das rezadeiras, o aboio, melodias e células rítmicas com repetições formam um cenário musical complexo que revela uma visão de mundo cíclica e tensa. Este universo polifônico de Cipriano é construído a partir de uma organização visual e musical barroca[2]. Os elementos intrínsecos da escrita musical (a música em si) não são elaborados dentro dos padrões estilísticos do período Barroco. A organização sonora do filme como um todo, sim, é de expressão barroca. Várias vozes soam em diferentes ritmos: a narrativa de Vicente, as orações, a música incidental, os ruídos próprios do ambiente. Toda esta construção musical funciona como várias linhas melódicas estruturadas em contraponto. A sonorização da película não é um simples adereço da imagem. Os eventos sonoros, da forma como estão encadeados, acentuam a tensão e o dilaceramento, provocado pelo embate do Bem e do Mal, no espírito do velho Cipriano.
Um aspecto marcante de Cipriano é a variedade de imagens visuais e sonoras. Uma construção politextual, como o trabalho de Douglas Machado e sua equipe, ignora interpretações simplistas e unidirecionais. O filme, de uma forma ampla, procura expressar as tensões e dissonâncias presentes no imaginário popular nordestino. A moldura deste discurso é a religiosidade, a morte e os sonhos, fenômenos retratados em toda a sua amplitude poética.
A tradição oral nordestina é um dos elementos estruturadores do trabalho do diretor. Os benditos e as “incelências”, presentes desde os primeiros minutos de projeção, servem como um motivo melódico que guia os caminhos harmônicos percorridos pela narrativa. Em virtude disso é que percebemos a dimensão que o som ocupa em um trabalho dessa envergadura. Curiosamente, Douglas iniciou o seu trabalho com sua equipe gravando as vozes das rezadeiras em Piripiri, cidade do norte piauiense.
O cinema, depois do advento do som na década de vinte, sofreu ininterruptas modificações estéticas. Na realidade, como nos afirmara Alberto Cavalcanti[3], música sempre houve no cinema. A complexidade estava – e ainda constitui um trabalho complexo – em se equilibrar diálogos, música e os ruídos do ambiente. A banda sonora narra, antecipa, reforça ou até mesmo nega as imagens. Longe de tornar o cinema mais próximo de nossa realidade audiovisual, como Pudovkin nos mostrara, a sonorização cria uma nova realidade cinematográfica, na medida em que transfigura as imagens.
II
Para Cipriano, o compositor Peter Loyd utilizou sons produzidos a partir de sintetizadores, além de percussões. Para estranhamento de muitos ouvidos desatentos ou desinformados, Loyd não se prendeu a temas (na maioria das vezes com melodia, no modo mixolídio, tocada por violas e acompanhada por zabumbas) com o intuito de firmar uma localização espaço-temporal do filme para o público. É certo que no tema de abertura ouvimos o acordeão solando uma melodia composta por duas frases com ritornelo. O interesse, porém, não é localizar e mostrar que estamos no Nordeste, já que o referido instrumento é típico na cultura desta região. Os scores iniciais, além de fazer alusão ao instrumento que Vicente leva consigo, atuam como um elemento reforçador da plástica da obra. Não obstante, antecipa o sentido do trabalho sonoro do filme como um todo: células musicais curtas e repetitivas que expressam um estado de grande concentração dramática.
O sertão de Cipriano não é temporal. Douglas Machado, além de não utilizar datas, procura filmar o sertão, na medida do possível, abstendo-se de julgamentos morais e políticos. Os próprios personagens já trazem em si uma trama de símbolos e de expressões capaz de tocar os interlocutores, independente do conteúdo de suas falas. Desta forma, torna-se infértil uma construção musical com função espaço/ temporal. A visão de mundo do filme é apoiada por fenômenos universais como a morte, a solidão, a religiosidade e os sonhos. Decerto que tais fenômenos possuem um determinado grau de especificidade em cada cultura, contudo também possuem zonas convergentes.
A música programática, especificamente a composta para um filme, se constrói a partir do diálogo com outros elementos estilísticos: fotografia, cenário, montagem, e encenação, principalmente. Diferentemente ocorre com a música dita “pura”, visto que a mesma possui uma vida própria, geralmente está desvinculada de componentes extra-musicais. Baseado nesta concepção da música dialógica é que se estruturou o som de Cipriano. Dois aspectos constantes do discurso do filme serviram de ponto de partida para as intervenções sonoras: os contrastes e a circularidade dos movimentos. A fotografia provoca contraste pelas cores (elemento que explicita diferentes temperaturas) e através do claro / escuro que oscilam. A montagem – organizada por imagens que circulam e servem como motivos condutores – articula planos rápidos (flashes) com planos lentos (o que valoriza a ação dramática). A narrativa é circular, igualmente ao fenômeno da vida e da morte. Atentemos para o fato de que Vicente inicia sua jornada na água, alegremente, enquanto seu pai está no chão, desfalecido.
Em círculos também são os fluidos movimentos da dança da morte, de Vicente na procissão, de Cipriano em seu cavalo, do aboio e das rezas que se repetem em algumas seqüências do filme. Como a música incidental apoiou esta concepção estética da imagem e dos sons diegéticos (da própria cena)? A partir da utilização de ostinatos melódicos e rítmicos. Os ostinatos, na linguagem musical, são motivos que se repetem constantemente, seguindo um padrã seguindo um padrrepetem constantemente algumas sequencias o rítmico, melódico ou harmônico. Em geral, este recurso musical gera tensão por ser obstinadamente repetitivo. Loyd utilizou-os no primeiro sonho (“Demônios”) com o uso de percussões. Nos demais sonhos, sobretudo na dança da morte (segundo sonho), o trilheiro optou por ostinatos com timbre metálico, como o próprio registro sonoro das rezadeiras. O timbre, conseguido a partir de sintetizadores, procurou criar uma conotação particular, como a própria seqüência. A morte, que remonta os personagens da mitologia clássica, possui um cosmo sonoro idiossincrático. Os ruídos do seu instrumento cortante, a cor peculiar de sua voz e toda a saturação sonora de fundo compõe o quadro de sua personalidade.
As tensões na música de Cipriano não são produzidas, na maioria do drama, pela passagem da dominante para o repouso da tônica. O estado de grande concentração dramático-musical da película é provocado pelas saturações sonoras e os contrastes: as orações, a narração, a música da cena, os ruídos ambientais e o silêncio. Ouvimos todo esse universo polifônico simultaneamente. Esta sinestesia, da qual não podemos separar nitidamente um elemento do outro, nos tira do nosso eixo comum, do nosso aparente equilíbrio.
No aspecto harmônico, a música tem, em geral, um ambiente sonoro modal. Principalmente nos primeiros minutos de projeção, o que nos antecipa a informação de que a narrativa não é linear, facilmente definida. Contudo, há de se observar que, nos últimos minutos de projeção, os teclados harmoniosos de Loyd tocam com acordes mais suaves e consonantes. É compatível com a textura dramática da obra, visto que os últimos instantes do filme são de conciliação: Cipriano encontra a morte, Vicente reencontra a vida. A linguagem modal da música incidental não é utilizada com intuito de representar o ethos de um povo, como se fizera na Grécia Antiga (embora sabendo que os modos dessa época diferiam dos de hoje), mas para escapar de alguns clichês harmônicos – principalmente o repouso na tônica – que deixam o enredo linear. De certa forma, seria um pleonasmo se optar por tal construção, já que o aboio e as rezas, componentes da música diegética, já se põem no nosso imaginário como expressões do mundo nordestino.
III
Um aspecto importante na construção de Cipriano são as personagens. O filme se desenvolve, basicamente, em torno de três: Vicente, Bigail e Cipriano. As rezadeiras desempenham funções sonoras e visuais que também são importantes na dramaturgia. Elas são filmadas com certo caráter documental, em contraposição à poeticidade dos outros personagens. A construção dos personagens é marcada pelo contraste, não só dramático como também sonoro. Vicente é um ser complexo: seus movimentos são fluidos, seu referencial audiovisual do mundo é desfigurado. Sua dramatização expressionista e sua emissão de timbre e palavras que buscam efeitos próprios criam um universo muito particular. Vicente busca a vida, deste modo seu mundo está cercado de sons. Lembremos do acordeon que carrega: um instrumento de movimentos fluentes, de sons e acordes aleatórios. O acordeon de Vicente alarga o universo de atuação de um objeto sonoro. Funciona na plástica da narração, na trilha sonora e na cenografia, além de representar o próprio personagem. A água é o abrigo de Vicente, o lugar onde sublima a falta da mãe e onde renasce. Há momentos do filme que ele recompõe o ritual do batismo: com as mãos molha sua cabeça e celebra a vida. Em contraposição termina a cena recompondo o ritual da crucificação de Cristo: com os braços abertos e estendidos.
Cipriano é marcado pelo silêncio. Seu nome é uma referência à dualidade Bem e Mal que envolve São Cipriano, símbolo espiritual que representa antagonismos. Ao contrário de Vicente, que celebra a vida, Cipriano sonha e busca a morte. Seus movimentos são contidos e o seu silêncio é mortal. Geralmente ele é filmado em câmera alta (plongé) ou câmera distanciada. À medida que se aproxima da morte, seu rosto é filmado em primeiríssimos planos. Embora sendo pai de Vicente, a aproximação dos dois só se dá nos últimos sonhos, pois o filho guarda certo rancor edipiano dele.
Dentro deste mundo tomado por antagonismo dramáticos e musicais, Bigail simboliza equilíbrio. Observemos no quarto sonho (“Cemitério”) uma resumida canção cantada à capela pela personagem:
Anjo caído do céu
Anjo sem asas de anjo
Cai triste do céu de fogo
Cai triste do céu meu anjo.
A voz nessa seqüência está em off, ou seja, o som não corresponde à imagem do ator que dramatiza. O referido plano nos mostra uma mão já marcada pelo percurso do tempo. A iluminação difusa e os dois anéis simbolizam a dualidade do mundo do personagem. Os quatro pequenos versos citados resumem a tônica do discurso cinematográfico de Douglas. As imagens elucidadas pelo texto remontam o mito da queda do anjo de luz. Coloca-nos em um maniqueísmo: o mundo das sensações (dos transgressores) e o mundo divino (de Deus e seus seguidores). A Terra e o Céu em outros termos.
Há um choque de densidade sonoro-dramática bem construído: a suavidade da voz de Bigail (estabilidade) com as explosões vocais e a forte entonação de Vicente (a instabilidade). A linha melódica entoada por Bigail percorre análogo caminho das imagens: do agudo, que é a dimensão superior (o Céu), para o grave, que é a dimensão inferior (a Terra).
O Êxodo da família de Cipriano é narrado por Vicente. Interessante é percebermos o acentuado contraste entre a narração linear e lúcida do personagem e a dramaturgia da obra como um todo. É o combate do espírito apolíneo (a fala que narra) com o espírito dionisíaco (a loucura de Vicente e as alucinações de Cipriano). Esse aspecto do filme revela uma visão de mundo cambiante: a convivência, ao mesmo tempo, com um mundo racional e com um mundo religioso.
O diretor concebe a linguagem verbal em seu trabalho como elemento de expressão plástica, textura dramática. Não é um simples meio de transmitir o sentido das ações e dos sentimentos humanos. A textura da música é compatível com toda a plástica da obra. Observemos a relação entre narração e a dramaturgia vocal: o texto do filme é entoado por um personagem que narra em primeira pessoa do singular. Assim, a textura da narrativa é monofônica, tem apenas um aspecto sonoro. Por outro lado esta narração é entrecruzada por uma polifonia vocal (as rezas, os aboios e os diálogos), o que provoca uma dissincronia. Este efeito é muito importante para acrescentar informações ao filme. Mostra-nos que Cipriano, mesmo trancado em seu mundo silencioso, vive perturbado pelas tensões do universo. Ainda nos remetendo a tal efeito, percebe-se que ele provoca uma alteração no tom intimista e confessional de Vicente, o narrador. Este procedimento muda o sentido da recepção sonora do interlocutor. Como ouvimos várias vozes ao mesmo tempo, a voz do narrador não tem a mesma projeção e autoridade. Na própria essência do coro está a coletividade, que é mais densa e impõe mais autoridade[4]. Há um momento, em “Procissão”, em que a voz de Vicente é a nitidamente tomada pelo coro religioso. A música, densas harmonias de teclado, pouco a pouco toma espaço e cobre o coro da procissão. Percebamos a significativa gradação: do individual ao coletivo, do coletivo ao poético, ao indefinível.
IV
Em algumas seqüências de Cipriano percebemos a convergência dos vários elementos estilísticos da linguagem cinematográfica, sobretudo música e montagem, embora a tônica do discurso do filme seja a construção das imagens e do som por antítese. O início do segundo sonho (“Morte”) é pautado pela convergência dos dois discursos: música e montagem. A montagem é realizada por leitmotiv, ou seja, por motivos que conduzem à articulação da cena como um todo. O efeito conseguido pela periodicidade de uma imagem (que funciona como um refrão musical) é o aumento da densidade dramática. A tensão é reforçada pela retomada do tema visual, em meio à variedade de linhas dramáticas. O velho Cipriano é o motivo condutor da montagem do referido sonho. A variedade de imagens que compõe a seqüência intensifica o drama da personagem, já que este permanece com a mesma expressão em sua casa solitária.
Um filme cuja montagem se volta mais para a organização do enredo em detrimento da sua expressão plástica, geralmente não oferece muita oportunidade para que a música dialogue com suas intenções mais profundas, com sua constituição íntima. Em Cipriano a construção é diferente. A expressiva montagem é comentada pela música, que não só a confirma como também lhe acrescenta informações. Montagem e música, sobretudo no início do sonho “Morte”, estão concatenados, imprimindo circularidade ao discurso e articulação fílmicos. Reafirmando o discurso da montagem, a música constrói efeitos similares: os motivos melódicos e rítmicos padronizados geram inquietude por serem obstinadamente repetitivos. Uma espécie de montagem audiovisual polifônica, amplamente estudada por Eisenstein[5]. O que se almeja mostrar, independente da terminologia cinematográfica, é que os vários fragmentos sonoros e visuais da seqüência culminam em um movimento contínuo e circular.
Os movimentos de câmera também reafirmam tal construção artística. Panorâmicas lentas são associadas ao movimento contínuo dos ostinatos. No aspecto rítmico diferem: a lentidão da panorâmica contrasta com a velocidade das células musicais. Notemos que a maioria das construções audiovisuais do filme é paradoxal. Em alguns momentos as duas bandas (som e imagem) estão devidamente sincronizadas, já em outros não. Tais paradoxos expressam o cerne da caminhada de Cipriano e seus filhos: a tensão provocada pelo embate de dois mundos – a vida e a morte; os sonhos e a realidade; o Bem e o Mal; o som e o silêncio; o corpo e a mente. Em geral é a configuração da iluminação: o intenso claro / a escuridão total. “Luzes e Trevas”. Esta concepção é bem nítida no terceiro sonho (“Procissão”). Cipriano, trancado em sua retraída casa, está imerso na escuridão; Vicente, tomado pelo verde da paisagem, está mergulhado em uma claridade total.
O mundo que compreende Cipriano está próximo do universo medieval barroco, em que as sensações colidem com a religiosidade. A partir desta premissa percebemos que a noção de tempo do filme é diferente da habitual. A temporalidade de Cipriano relaciona universos simbólicos com verbais e visuais e (re)constrói, desta maneira, o tempo do ritual religioso. O tempo que extrapola a noção do real, do cronológico. Neste sentido é construída a música: a linha melódica (ondulada) é conduzida de uma forma que não direciona a percepção do interlocutor para um eixo temporal retilíneo. Em diversos filmes da época clássica hollywoodiana é possível percebermos uma música cujo eixo melódico está rigorosamente concatenado com a trama. Na medida em que a projeção vai findando, a música vai dando a noção de finidade (através das resoluções tonais que condizem com as resoluções do enredo). A ocorrência de tal situação reside no fato de que a música do cinema herdou muitos recursos presentes na dramaturgia musical operística. O tempo do ritual religioso não é medido cronologicamente, portanto a formação poético-musical da obra em discussão compactua com esta intenção artística.
Para dialogar com as diferentes linguagens que compõem o cinema, o compositor não utilizou intervenções sonoras lineares. Em outros termos, não compôs melodias harmônicas que, na maioria dos casos, procura conformar o ouvinte e não lhe causar estranhamento. É certo que estranhamento ou não de uma realidade sonora depende do universo de referencialidade do interlocutor. Porém, há no mundo musical do Ocidente uma educação que tende a levar o indivíduo (pelo menos o espectador médio) a estranhar as linhas melódicas que provocam tensões (por possuírem notas que não são do acorde) e não geram imediato repouso.
Contudo, há exceções no referido filme. Uma delas, a mais perceptível, é uma singela melodia que nos lembra as caixinhas de música infantil. Parece até estar discordando de toda a construção sonora da película. Por um lado está, uma vez que se nos mostra com uma linguagem tonal mais clara, com repouso na tônica. Por outro lado está revelando algo sobre a construção psicológica dos personagens, uma carga emocional subliminar, mais precisamente de Vicente. A música com o timbre próximo ao do xilofone (executada por sintetizador) explicita a infantilidade de Vicente no terceiro sonho (“Procissão”). Funciona também como equilíbrio de densidades sonoras, já que é muito suave, ressaltando assim a suavidade do espírito de Bigail no segundo sonho (“Morte”).
V
Uma narrativa aparentemente simples e linear. Um homem deseja morrer próximo ao mar. Seus filhos Abigail e Vicente são designados a realizar tal promessa.
Navegar no universo de Cipriano é procurar sentir a abrangência poético-musical do nordestino, do latino-americano. Trata-se de uma “viagem ao desconhecido” (Maiakoski), de uma investigação das camadas internas desse “acordar-se para dentro” (M. Quintana) que são nossos sonhos. Longe de utilizar os sons para nos dizer o que as imagens do mundo já o fazem, Cipriano possui um conjunto de sons de referencialidade própria. A aparente desorganização do som da película não deixa de possuir, no fundo, um equilíbrio tenso. Não obstante, os planos sonoros e visuais da obra nos remetem a alegorias, a arquétipos e, desta forma, são muito mais do que simples analogias audiovisuais. Há, pois, um equilíbrio entre a inteligibilidade com que é expresso tais eventos e a fruição emocional e artística da obra como um todo.
A variedade de símbolos de Cipriano pode nos conduzir a diferentes interpretações. Pode simplesmente nos arrastar para o seu mundo e nos provocar diferentes sensações. Observemos em Vicente a força com que procura expressar seu universo interior. Mergulha, canta com parte da boca imersa na água e procura, assim, construir novos significados para a sonoridade do mundo. Ele expressa, no primeiro sonho (Demônios), como entende o mundo e as pessoas de sua vivência:
Bigail anda e anda e se enterra em seu silêncio. Em suas memórias distantes. Eu me passo, me distraio. Crio o meu mundo e venho vez em quando visitá-la. O pai é dela, não meu. Eu não quero ser seu filho, e por não querer não sou. Ele sonha, eu vivo. Eu gosto da Bigail e com ela fico.
A fala do personagem (na narração, em off) nos comunica a preocupação com que o filme busca construir uma realidade pessoal, somente compreendida amplamente dentro do seu próprio contexto.
A realidade audiovisual do filme não faz alusões à pobreza e aos problemas político-sociais do Piauí. O mundo “cipriânico” fotografa a dimensão espiritual e artística do humano. Não há espaço para bairrismos e panfletos. Douglas Machado entende que o cinema-arte não é um simples meio de transmissão de um conteúdo ideológico, pois não pode ser negado enquanto linguagem. A trilha sonora do filme, de uma forma geral, conseguiu expressar o que não está nas imagens. Não se trata de um trabalho sonoro mercadológico que entremeia o filme de canções (muitas das vezes sem nenhuma funcionalidade) já conhecidas ou de fácil assimilação para atingir uma alta vendagem da trilha musical. Trata-se de um trabalho que visa alargar a dimensão poética da imagem, sendo também um importante elemento para compreendermos o discurso fílmico.
Por tudo isso, o som em Cipriano é muito mais que uma fotografia da nossa realidade sonora. Constitui-se uma incessante busca da complementação da poesia visual com a poetização do som. Há algum tempo, sobretudo no cinema contemporâneo, com o aparato tecnológico digital (doulby digital), o “ruído”[6] adquiriu uma dimensão estética essencial para a construção e compreensão do fenômeno cinematográfico. O contraponto do elemento sonoro com a imagem vigorou principalmente na cinematografia moderna. Em Cipriano estamos diante de uma produção que pensa o cinema como uma arte que constrói uma nova percepção do humano e do mundo, fenômenos indissociáveis. Neste sentido, não há na película uma rigorosa sintonia estilística entre música e imagem, com a qual se procura construir sistemas totalizantes. A “desarmonia” entre palavra, ruído e imagem, ratifiquemos, cria um universo conceitual próprio em Cipriano. Tais eventos corroboram o aspecto dominante da composição do filme: a tensão - provocada pelo “desacordo” entre os elementos estilísticos, e a textura polifônica – composta pelas diferentes linhas melorrítimicas.
[1] Lívio Tragtemberg (In Música de cena: dramaturgia sonora. São Paulo: Perspectiva, 1999, p.55.) partindo das idéias de Murray Schafer, coloca que a “paisagem sonora é uma forma de textura sonora que embute a idéia de que o sentido totalidade vai se construindo passo a passo, cena a cena, pelo expectador. Assim ao usar texturas sonoras marcadamente originais, facilita-se a sua memorização e capacidade de relacioná-las”.
[4] A idéia é de Lívio Tragtemberg , Op. cit.
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