quinta-feira, 10 de setembro de 2009

miniaturas V


Teresa Salgueiro sempre foi associada ao grupo “Madredeus”. De fato, este foi o grupo musical responsável pela ascensão da carreira artística da cantora portuguesa, que esteve presente nele desde a sua formação até o ano de 2007. Entretanto, Teresa mostrou – a partir de 2005 (início de sua carreira-solo) – que suas interpretações extrapolavam a musicalidade do “Madredeus” e se estendiam às canções populares de diversos contextos musicais (brasileiro, norte-americano, etc.).


“Você e eu”, trabalho solo lançado em fevereiro de 2007, está entre os grandes álbuns de “música popular brasileira”. Digo “brasileira” não só pelo fato de se tratar de uma obra composta de canções populares nacionais, mas também porque há, em “Você e eu”, uma rítmica, um suingue, uma dicção brasileira. Aos defensores ferrenhos de uma música nacional, o disco pode não agradar, pois para muitos interlocutores a música é “coisa do sangue”. Não sendo possível, dessa maneira, um músico de origem estrangeira executar de forma convincente a nossa música. Para os que compreendem o discurso musical como um fenômeno cultural amplo, um sistema de signos aberto a novas interpretações e recriações, a obra é um rico convite à nossa percepção e deleite musical.


Uma voz de soprano exata, sem torneios melódicos e coloraturas desnecessárias. Um timbre belo e agudo, mas sem vibratos ornamentais. Assim podemos falar, em linhas gerais, da voz de Teresa. Como João Gilberto, cada palavra cantada por ela é rigorosamente medida e pesada, para que melodia, letra e arranjo formem um todo indissociável. Os arranjos instrumentais (do grupo Septeto de João Cristal) – a la manieira jobiniana – são construídos com poucas notas e não procuram chamar a atenção para si mesmos. E quando coloco o nome de João Gilberto e Tom Jobim, não se trata de uma comparação à toa. A linguagem da bossa nova é, efetivamente, a base musical de todo esse trabalho musical da cantora portuguesa. Nada de dramatismos, de interpretações virtuosísticas e afetadas. Estamos mais próximos do mundo musical de uma Miúcha, de uma Leila Pinheiro, do que de uma Elizete Cardoso, de uma Elis Regina (em alguns momentos de sua carreira).


Figuram, dentre os vários compositores interpretados: Ary Barroso, Tom Jobim, Chico Buarque de Holanda, Pixinguinha e Dorival Caymmi. Como podemos notar, estão em pauta as principais matrizes composicionais e poéticas da nossa música popular urbana. Dentre as ricas interpretações de Teresa, destaco “Modinha” (de Antônio Carlos Jobim). A voz bela e bem projetada da soprano é acompanhada por um arranjo de piano e cordas friccionadas (uma herança do “Madredeus”?). Ela canta, com uma exatidão e uma afinação precisa, cada nota da melodia passionalizada de Tom Jobim. A canção jobiniana passa a nos transmitir uma sensação de melancolia e distanciamento entre sujeito e objeto pouco observado em outras interpretações. Isso porque todo o conjunto (arranjo, canto, dinâmica, fraseado, etc.) é composto em função da obra jobianiana e não para mostrar virtuosismos estéreis.


Para quem compreende a canção popular como um rico sistema de comunicação artística e não apenas como um entretenimento, “Você e eu” é uma obra de grande valor. Teresa Salgueiro, muito mais do que uma cantora de voz bonita, é uma intérprete exigente, que procura (como diria Luiz Tatit a respeito de João Gilberto) descobrir várias canções dentro de uma mesma canção.


Alfredo Werney

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