terça-feira, 24 de novembro de 2009

Wanderson Lima analisa Bob Esponja


Universo de Bob Esponja: ingenuidade, idiotice e poesia


I. Desenho animado e pedagogia

Há um conhecido estudo sobre o Pica-Pau, fruto de uma tese de doutoramento que depois se fez livro, intitulado O Pica-Pau: herói ou vilão? Representação Social da Criança e Reprodução da Ideologia Dominante (Loyola, 1985). A autora deste estudo, Elza Dias Pacheco, chega a um veredicto duro sobre o desenho: o Pica-Pau, diz ela entre outras coisas, é alienador, escapista e propagador de uma indesejada ideologia americana. Analisando o episódio “Freeway Fracas”, intitulado em português “Auto-estrada fracassada”, Pacheco afirma que ali se mostra “um mundo irreal onde as coisas simplesmente acontecem não se sabe como, quando e onde. Por outro lado, as contradições não são mostradas, pois enquanto o Pica-Pau lutou e venceu pelos seus direitos de posseiro, nós aqui não temos isso e não podemos reagir como ele. Então até que ponto tais conteúdos não geram uma forma de alienação?”.

Em 2006, na Umesp, em São Bernardo do Campo, Renata Boutin defendeu a dissertaçãoAspectos pedagógicos do desenho animado infantil Bob Esponja. Boutin, ao contrário de Pacheco, reconhece o valor pedagógico das animações televisivas, mais especificamente do seu Bob Esponja. Na “Considerações finais” de seu estudo, conclui ela que os conteúdos de SpongeBob “são envolvidos por uma estrutura significante que lhes conferem sentido e orientam suas leituras, normalmente oferecendo modelos de conduta positivos que podem ser apropriados e utilizados no cotidiano da criança”.

Se tomarmos esses dois trabalhos como posturas paradigmáticas da academia universitária em relação à animação televisiva - o primeiro assentado num arsenal esquerdista engajado, moralista e anti-cultura de massa, o segundo se pautando no novo esquerdismo culturalista, com apoio nos culturies studies e na análise do discurso -, veremos que pouco coisa mudou nesse arco de três décadas que separa as duas pesquisas. Digo pouca coisa porque, se o julgamento hoje tende a ser favorável ao desenho animado, o ponto de partida da abordagem continua sobrevalorizando a dimensão pedagógica das animações. A preocupação, pois, foi e continua sendo moral. A pergunta-chave dessas pesquisas, em geral, é: faz bem ou faz mal a criança assistir a determinado desenho?

A pedagogização na abordagem dos desenhos não se equivoca ao reconhecer a influência deles sobre as crianças (e, também, sobre os adultos). Desenhos, de fato, influenciam os padrões comportamentais das crianças, assim como cães de estimação, latas de refrigerantes e professoras dedicadas. O problema é que tais estudos comumente não levam em conta a recepção dos produtos midiáticos e supõem que as crianças recebem passivamente as “mensagens” dos desenhos[1]. Levando a lógica desses estudos ao último grau, as crianças farão com suas mães ou professoras o que o Pica-Pau faz com a Meany Ranheta ou com o Leôncio.

Poucas são as abordagens - e essas poucas, em geral, vêm de fora da academia universitária - que se ocupam da dimensão estética das animações televisivas. No Brasil, sofremos a falta de uma formação estética para a recepção de desenhos animados. Coisa banal? Faz sentido ensinar o óbvio? - seriam as perguntas daqueles que acham os desenhos “coisa de criança”. Quando digo “formação estética” me refiro a aspectos ligados à construção formal dos desenhos e aos efeitos de sentidos que esses construtos formais produzem. Refiro-me, por exemplo, à interação entre som e imagem, à utilização das cores, ao traço e ao gênero do desenho. Em desenho animado, diferenças formais não se ligam apenas ao ornamento e à verossimilhança - estão vinculadas intimamente a visões de mundo. Como todo e qualquer produto de arte, as animações televisivas, para serem analisadas em seus conteúdos, exigem um investimento na compreensão de suas operações formais.

A seguir, explanei algumas idéias sobre o universo de Bob Esponja, procurando perseguir os encaminhamentos acima apontados. Investirei, portanto, numa compreensão desse desenho como artifício formal que produz efeitos de sentidos, deixando de lado preocupações de natureza moral.

II. Ingenuidade, idiotice e poesia

Acima de tudo, a força maior de Bob Esponja parece ser transformar a ingenuidade e a idiotice em poesia bem-humorada. Bob Esponja é revivescência pós-moderna do Dadaísmo, isto é, ele extrai a anarquia, o ludismo e o nonsense[2] da escola dadaísta, mas tira destes traços todo o peso que os fazia ameaçadores ao status quo, em política e em estética.

Dadaísmo despolitizado, Bob Esponja celebra, num niilismo cool, o gesto idiota, descontextualizado, desconexo, inabitual - acima de tudo, ingênuo. A ingenuidade de Bob Esponja instaura uma forma singular de relação com o mundo, poética, em que a rotina, para lembrar Ozu, mantém um encanto constante. É sintomático de nossa época o tipo de niilismo exposto em Bob Esponja: nem de longe levado às últimas conseqüências como no caso do homem do subsolo de Dostoievski, nem reativo e trágico como aquele apregoado por Nietzsche através do amor fati. Um niilismo pop. Nem um pouco maniqueísta, Bob Esponja, no seu niilismo alegre, obscurece as fronteiras entre bondade e maldade: de suas ações só se pode dizer que são puras. Ele chateia Lula Molusco não porque seja mal, perverso; assim também, ele ama seu trabalho não porque seja ordeiro, submisso ou crente no “sistema”. O que, então, este anti-herói marinho é? A resposta nos levará a uma tautologia: ele é puro porque é ingênuo e ingênuo porque puro. Quando, em alguns episódios, ele abdica da pureza, retorna à ingenuidade pela idiotice. Patrick Estrela, sem dúvida, é um duplo de Bob Esponja, mas essa estrela-do-mar é bem menos complexa enquanto personagens porque suas ações estão sempre pautadas na idiotice.

André Bazin[3], estudando os filmes de Chaplin, notou que para Carlitos os objetos funcionais são desautomatizados por um uso não-funcional; a operação desautomatizante em Bob Esponja consiste em fazer deslizar o funcional para o afetivo. Esta operação, como sabemos, é tipicamente infantil; crianças humanizam travesseiros, ursos de pelúcia, bolas etc. Bob Esponja[4] trata como gente, e gente a que se tem grande apreço, espátulas, casa, hambúrgueres, folhas de papel etc. Enquanto Seu Siriguejo, capitalista caricato, reduz tudo a um único valor (o papel-moeda), Bob Esponja tende a dar valor único a cada coisa. Essa ternura generalizada, meio que franciscana, constitui o cerne do anti-heroísmo de Bob Esponja. Bob Esponja não sabe fazer o mal, mesmo quando deseja. Num episódio antológico, Plankton tenta ensinar Bob Esponja a ser mal; o plano, claro, termina frustrado e no final do episódio Bob Esponja se oferece como bola para uma partida de voleibol.


III. Por que amamos Bob Esponja


Bob Esponja é amarelo. O amarelo simboliza a alegria e a juventude, mas também é indicativo de doença, fraqueza e covardia. O formato de seu corpo é quadrado, demonstrando certa falta de apuro, certo anacronismo. Os olhos são grandes e sugerem ternura, o que se reforça com os três risquinhos das pestanas. Possui dois dentes, grandes e separados, que transformam seu sorriso num daqueles de um idiota caricato ou de um bobalhão ingênuo. Seu nariz é grande e fino e na abertura dos episódios serve como instrumento musical (Bob Esponja tocando flauta no nariz: uma ode à idiotia). Veste um traje demasiadamente formal levando em conta sua aparência geral; a gravata, em vez de dar o tom de seriedade, transforma-se na cereja do bolo de um sujeito surreal. Este conjunto, paródia do parodiador Carlitos, contém um apelo emotivo quase irresistível, materializando de forma antológica a simpatia terna de certos idiotas. Este é o primeiro apelo à nossa simpatia que o desenho traz. Mas há outras fatores, não tão evidentes.

Bob Esponja oferece aos adultos uma possibilidade ímpar de fantasia regressiva e compensatória por ter a capacidade, já dita acima, de poetizar a rotina. Mais que isso: Bob Esponja, sem a tragicidade do amor fati nietzschiano[5], ama um trabalho em que ele é explorado até a medula. E este fato revela a singularidade da idiotice de Bob Esponja. Em geral, os idiotas são explorados, mas, neste desenho, a coisa se inverte: a idiotice zomba da ordem social, a desconserta. Não afirmaria por isto que a idiotice deste anti-herói seja política, no sentido estrito do termo. Como o Carlitos de “Tempos modernos”, Bob Esponja funda uma crítica social anterior à conscientização política[6].

Mas, que fique claro, se amamos Bob Esponja a causa está longe de se relacionar com a crítica. O reino de Bob Esponja é o da poesia, uma espécie poesia da idiotice, profundamente cativante. Gostamos de ver Bob Esponja transformar uma ida a um supermercado numa aventura, regozijamos de ver os esforços do anti-herói para conseguir tirar sua habilitação, ou de se sentir orgulhoso por ter feito mais um hambúrguer de siri. Para nós, isso tem um nome bem feio: rotina. No universo de Bob Esponja, a rotina, no seu sentido negativo, só existe para o Lula Molusco. Este é a caricatura do intelectual-artista frustrado. Estruturalmente, a função de Lula Molusco é oferecer, com sua “inteligência”, um contraponto à idiotice de Bob Esponja. E assim como a idiotice zombou do trabalho, ela aqui também zomba largamente do intelectualismo (numa caricatura cruel de grande poder catártico). E eis aí outro motivo por que nós, adultos, amamos este desenho: no trabalho, na escola, no bar, em qualquer ambiente social, nos deparamos com Lulas Moluscos.

IV. Considerações finais

Zygmunt Bauman[7] argumenta que um dos traços da pós-modernidade é um desejo de liberdade em contraposição ao desejo de ordem e racionalização da modernidade. Ninguém quer trocar a liberdade, força-motriz da felicidade, por nenhuma promessa futura, seja ela realizável aqui na terra ou no Além. Há, portanto, um imperativo no ar, quase paranóico, de que temos, a qualquer custo, ser felizes. Este fato faz proliferar miríades de terapias e adesões a crendices, de intervenções cirúrgicas com fins estéticos, de consumo de psicotrópicos e de obras de auto-ajuda. Bob Esponja se insere nesta cultura fundando uma espécie de “niilismo adocicado”[8] cujo poder maior é transformar o rotineiro em estranho, o denso em leve, o trágico em bufonaria, o compromisso em jogo.

Wanderson Lima é poeta e ensaísta. Professor de literatura da Universidade Estadual do Piauí - UESPI e doutorando em Literatura Comparada pela UFRN. Leia mais textos do autor aqui.


[1] Sobre as estratégias responsivas e ativas no processo de recepção dos produtos midiáticos, ver CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano. Petrópolis: Vozes, 1994

[2] Segundo Jean-Jacques Lecercle, o nonsense é o subproduto do desenvolvimento da instituição escolar; enquanto a escola desenvolve a necessidade do sentido claro e útil, o nonsense imita a instrução escolar com o fim de subvertê-la. Porém o nonsense vai além disso, constituindo uma forma de resistência à toda tradição hermenêutica. Ver LECERCLE, Jean-Jacques. Philosophy of Nonsense. Nova Iorque: Routledge, 1994.

[3] Ver BAZIN, André. Charlie Chaplin. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.

[4] Na maior parte das análises de Bob Esponja que li, ele é tratado como criança. Isto me parece equívoco; acredito antes que a dicotomia adulto-criança não tenha aplicabilidade no universo do desenho.

[5] Sobre o amor fati em Nietzsche, a aceitação trágica e amorosa do necessário e do inevitável, ver § 276 de Gaia Ciência. In: NIETZSCHE, F. Gaia Ciencia. São Paulo: Cia. das Letras, 2001.

[6] Ver a leitura de Tempos Modernos em BARTHES, R. Mitologias. Rio de Janeiro: Bertran Brasil, 1989.

[7] BAUMAN, Z. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

[8] Expressão de Felipe Bragança, na revista Contracampo, no excelente artigo sobre Bob Esponja - O Filme. Disponível: < http://contracampo.com.br/67/bobesponja.htm>. Acesso em nov. 2009.


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