sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

poesia




Poesia e realidade

Newton Oliveira Lima*



Lendo uma entrevista com o poeta espanhol Antônio Gamoneda na revista literária Cult (n. 46, ano IV, 2001), considerei assaz interessantes suas assertivas a respeito da essência da poesia e da função social que ela pode exercer.

Primeiramente, o poeta disse que a poesia expressa o irreal, não tendo sentido uma produção poética realista, que versa acerca de temáticas cotidianas; para se imiscuir no real, disse o poeta, basta sintonizar-se nos meios de comunicação.

De minha parte, adversário que sou do realismo literário, por considerar que a arte é essencialmente transformação e transfiguração do real, e até mesmo uma captação direta do irreal imaginário, concordo plenamente com os dizeres de Gamoneda, especialmente quando ele afirma (GAMONEDA, 2001, p. 52): “O que é possível na poesia é inverossímil fora dela e Aristóteles afirmava ser verossímil que, na poesia, ocorram coisas inverossímeis(...) A poesia é uma outra linguagem, porque nela se criam realidades que têm existência intelectual e corporalidade oral, que não são possíveis fora dela.”

Gamoneda traça instigante visão poética, situando-se em franca oposição aos versistas espanhóis da atualidade, que segundo ele primam em demasiado pela expressão da realidade, sendo pobres em imaginação criativa.

Fala ainda na função social da arte, que consoante sua lição, estaria em franca oposição ao realismo, que está calcado no “pensamento fraco”, o qual se pauta na realidade imediata, cotidiana, cuja reprodução em termos de arte interessa ao sistema dominante. A poética deve ser, ao contrário, uma “transgressão do real”.

Essa visão de Gamoneda pode servir de ponto de partida a uma crítica ao realismo como um todo que, mesmo quando apresenta a clara intenção de criticar o real, consubstancia-o, ratifica-o, porquanto não escapa ao determinismo da “realidade objetiva”; é como se o poeta ou prosador realista pretendesse lutar com o inimigo (a realidade social injusta, por exemplo) com as mesmas armas e no mesmo campo de batalha deste, somente olvidando um detalhe: que o contendor é bem mais hábil que ele; que pela crítica direta ao real, revalidam-se seus esquemas conceituais e seus mecanismos ideológicos ao invés de combatê-los, de criticá-los.

Esse “círculo vicioso” que o real impõe, é certamente difícil de quebrar; até mesmo os grandes mestres realistas incorreram no erro de almejar “atacar” o real diretamente, sem notarem que o estavam ratificando.

O realismo e sua congênere estrutura de concepção da realidade, o naturalismo e empirismo deterministas, somente observam o real a partir do ponto de vista exterior: as relações da matéria e energia se desenvolvendo por si mesmas, a realidade e, por extensão, a sociedade e a natureza, com suas leis objetivas que se apossam da individualidade.

Como diz Battista Mondin, o marxismo e o estruturalismo, reduzem o homem a mero peão em um grande jogo, descartando a possibilidade de auto-transcêndencia da individualidade. Daí o desprezo pela subjetividade nos sistemas marxistas (influenciados pelo realismo e pelo materialismo), criando uma arte de “realismo social” no período stalinista, que apregoava que a função da arte seria apenas a de exprimir as relações de dominação social e a crítica dessas realizações, desprezando, por exemplo, as fontes de inspiração tradicional do povo russo: a religiosidade cristã ortodoxa, o trágico nacionalismo.

Ora, nesses sistemas, não existe espaço para a interioridade que a alma humana precisa para reconstruir para si uma parcela dos eventos exteriores ao espírito, como diz Dietrich von Hildebrand. Assim, todos os sistemas espiritualistas, desde a hermenêutica compreensiva de Wilhelm Dilthey até a fenomenologia essencialista católica de Max Scheler, passando também pelo idealismo subjetivo de Fichte, dos neokantianos, não aceitam o reducionismo no qual as correntes realistas buscam comprimir a alma humana e dizem que o homem é algo a mais, um a-ser, uma pessoain fieri (em formação), é criativo e transformador de sua condição.

É pessoa humana, como bem lhe concedeu a dignidade o cristianismo, e não mera peça de uma engrenagem, pois possui a faculdade essencial de colocar-se ante o real e dele abstrair, de superá-lo em busca da espiritualidade.

No campo estético, pois, o embate entre o realismo e o idealismo criacionais é uma constante. Assim, desde Júlio Ribeiro até Eça de Queirós, de Giovanni Boccacio até Fiodor Dostoiéviski, que se tenta criticar as injustiças sociais e as mazelas humanas, sem que tal crítica se reverta em meio de transformação do real.

Com o realismo fantástico, exemplarmente, que em verdade é uma vertente do idealismo criacional, como o desenvolvido por Luciano de Samóstata (“Diálogo com os mortos”), Lawrence Sterne (“Viagem Sentimental” e “Tristam Shandy”) e Machado de Assis (“Memórias Póstumas de Brás Cubas”), é que se pode fugir das malhas estreitas do real e atingir um nível de crítica e de percepção capazes de conferir uma visão diversificada do mundo, desvencilhando-se dos parcos meandros dos fatos, e fazendo com que o espírito reconstrua para si uma parte do real, que pela recriação subjetiva se reveste de um novel significado: eis a verdadeira crítica que a arte pode suscitar nas funções sociológica, compreensiva e espiritualista.

Assim, válidas são as colocações de Gamoneda, e sua poesia, com a de todos os que não aceitam os meros padrões da sua época, com a daqueles que são irascíveis e não compactuam com as ideologias de momento, mas buscam a expressão do interior transcendente, a visão holística do intersubjetivo (eu-tu de Martin Buber) e do trans-subjetivo (homem-natureza), que são, enfim, espiritualizados e espiritualizantes em sua poética e não meramente realistas crus e secos, mecanicistas, maneiristas de formas ou conteúdos pré-determinados e deterministas.

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*Newton Oliveira é mestre em direito e professor efetivo da Universidade Federal da Paraíba.

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