Fernando Pessoa em caricatura de Gustavo Duarte
[Esta entrevista, aqui sem algumas perguntas, data de 2003 e saiu no jornal Diário do Povo em 3 partes. Não reflete plenamente nem a visão do entrevistado nem do entrevistador atualmente, mas nem por isso parece ter perdido o interesse]
Wanderson Lima: Segismundo Spina, reverberando o pensamento de Jules Combarieu, admite que a poesia é a “irmã menor da música”; já Fernando Pessoa, em suas páginas de estética, assevera, com certo exagero, que “as artes são todas uma futilidade perante a literatura”. Como você se situa diante dessa questão? Pode-se estabelecer, como o fez Schopenhauer, uma hierarquia das manifestações artísticas?
Alfredo Werney : Eu acredito que não. A intuição, a capacidade criadora, a sensibilidade são elementos inerentes ao poeta, ao músico, ao bailarino, ao ator. O que diferencia um do outro é a forma com que manifestam o seu potencial artístico. Enquanto o músico manifesta sua arte através de sons, o bailarino expressa com seu próprio corpo, o poeta com a língua. No fundo eu acho que as artes são mais parecidas umas com as outras do que imaginamos. A música, as artes plásticas e o cinema estão dentro da poesia; a dança é companheira inseparável da música, assim como o teatro da literatura. Eu, particularmente, concebo uma idéia: só existe arte bem construída e arte mal construída. Eu concebo a hierarquização dos artistas, não da arte.
WL: O que o músico tem a aprender com a poesia? O fato de você ser um leitor assíduo de poesia modifica sua concepção musical?
AW: A poesia é uma das manifestações humanas mais fascinantes e complexas.Em todas as outras artes existe o elemento “poético”.A estrutura da arte poética engloba vários elementos: imagens,sons,ritmos,idéias. O senso rítmico e a musicalidade sutil de poetas como Fernando Pessoa e Cecília Meireles são uma verdadeira lição para o músico. Mudanças musicais marcantes partiram da poesia. Basta citar a revolução do poeta francês Mallarmé, que desestruturou a linguagem discursiva e abriu um novo campo de possibilidades para a poesia. Mallarmé realizou uma revolução estética a ponto de influenciar a música e a pintura. Daí é que parte a experiência marcante de Schoenberg e Webern, inaugurando uma nova forma de se construir a música, pondo em questão toda uma tradição estruturada no tonalismo. Villa-Lobos, que foi o maior músico brasileiro, afirmou que as imagens criadas nos poemas de Catulo da Paixão Cearense lhe inspiraram em suas composições mais do outros grandes músicos brasileiros. O fato de ler poesia me faz repensar o que ouço. Tive um grande impacto ao ler H.Dobal, percebi que ele é um dos poucos artistas que construiu uma arte “piauiense”. É claro que existiram e existem outros grandes artistas que não tiveram esta intenção. A genialidade de H.Dobal em construir uma linguagem e uma “mensagem” que retrata bem o Piauí é uma lição para qualquer outro artista do Estado. Dobal engajou-se em sua própria linguagem, sem precisar apelar como outros poetas locais que, de maneira bairrista, falam do Cabeça-de-Cuia, do rio Parnaíba, do rio Poty e acreditam está retratando o Piauí. Creio que o caminho menos longo para realizar um trabalho musical que se identifique com o Piauí, não é ouvir música piauiense (até porque nenhum músico ainda conseguiu fazê-la) mas sim ler H. Dobal.
WL: A pergunta,agora, é o inverso da anterior: o que o poeta pode aprender com o músico?
AW: Creio que o poeta também é um músico. No sentido de ser um artista que precisa ter senso rítmico, melódico e procurar harmonizar idéias e sons dentro do texto. Concordo com Ezra Pound quando ele afirma que a poesia empobrece à medida que se afasta da música. Porém, considero uma falha os poetas quererem fazer música com as palavras, nunca vão conseguir. Prefiro um Fernando Pessoa, que deixa fluir sua musicalidade, a um Camilo Peçanha, que força a poesia “parir” música. Esta situação é comum a alguns poetas simbolistas. Posso afirmar que os poetas que têm uma boa escuta musical e acompanham a trajetória dessa arte ao longo dos anos, são capazes de utilizar elementos musicais importantes como melodia e ritmo em sua poesia. Algo importante sobre poesia e música é o fato de muitos pesquisadores sustentarem a tese de que as duas artes surgiram unidas. Quer dizer, a humanidade começou a falar cantando e poetizando. Não é fantástico!?
WL: Quais os perigos, se é que os há, de se musicar um poema de um grande poeta, como Drummond ou Pessoa?
AW: É uma tarefa árdua e perigosa musicar um poema de um grande poeta. O primeiro passo é respeitar o escritor; não é uma atitude responsável musicar o poema de autor sem conhecer e discutir sua obra. É importante perceber o que o artista revela como preocupação principal em sua arte. O que acontece com a ópera é similar, o músico tem transmitir toda a tensão e o espírito do enredo, de maneira que se possa sentir, através da expressão musical, todas as nuanças da obra. Na época em que viveu Bach, o maior dos músicos, a poesia não acompanhou sua música.No clima pós Guerra dos Trinta Anos, produziu-se uma poesia de baixa qualidade na Alemanha. Assim, têm-se magníficas cantatas de Bach escritas por poetas medíocres como Picander e Neumeister. Já ouvi algumas experiências interessantes desse trabalho no Brasil. Chico Buarque foi muito feliz ao musicar o belo poema dramático “Morte e Vida Severina”. Já Adriana Calcanhoto não se saiu bem ao musicar alguns poemas do grande poeta português Mário Sá Carneiro. A música de Calcanhoto não acompanhou o espírito inquietante e as perturbações filosóficas do texto de Sá Carneiro. Atualmente, o compositor Belchior está realizando um trabalho de musicalização de poemas de Carlos Drummond de Andrade. Confesso que não estou com boas expectativas
Nenhum comentário:
Postar um comentário