segunda-feira, 10 de outubro de 2011



Ser ou não ser fiel: eis a questão!

(Alfredo Werney)

O cinema não é uma espécie de teatro filmado, muito menos uma narrativa literária ilustrada com imagens. As teorias cinematográficas e os cineastas nos ensinaram estas lições há algum tempo. Trata-se de premissas que, em geral, são aceitas pela maioria dos apreciadores da sétima arte. Mas, se o cinema possui uma linguagem própria e um filosofar concreto por imagens (como nos dissera o filósofo Deleuze em sua obra “Imagem-Tempo”), até que ponto a sétima arte pode fechar-se em si mesma e não procurar diálogos com outros sistemas artísticos? No que se refere a “adaptações”, um cineasta pode reconstruir uma obra literária com inventividade sem lhe tirar a “essência”? São questões instigantes que desafiam constantemente os estudiosos e os interlocutores do cinema e que podem ser observada na construção da obra cinematográfica de diversos autores.

Recentemente assisti a uma “adaptação” cinematográfica da peça “A Tempestade”, de Shakespeare (Propero's Books, 1991, direção de Peter Greenaway). Este filme me fez refletir sobre diversas questões que envolvem cinema e literatura. Uma das questões que mais me inquietou foi sobre o limite de re-criação (a partir de uma obra literária) que um diretor pode chegar. Neste sentido, achei muito invasiva a presença do cineasta britânico. Ele, longe de querer simplesmente adaptar a obra para o cinema, procurou reinventá-la (alguns estudiosos preferem usar o termo tradução intersemiótica quando se trata de adaptações de obras literárias para o cinema). Shakespeare, o bardo inglês da Renascença, ganhou uma montagem de planos rápidos e tempestuosa que pouco tem a ver com a noção de tempo do homem de sua época. A música de Michael Nyman engendrou um tom operístico e romantizado – tanto nas canções como na trilha instrumental – que pouco ou nada se afina com o espírito apolíneo e a suavidade da paisagem sonora renascentista. A peça ganhou um tom surrealista que, mais uma vez, não se observa no universo shakespeariano. Enfim, a obra de Greenaway me pareceu estar povoada de certos anacronismos que me incomodam um pouco. Contudo, não podemos considerar tais anacronismos como simples equívocos. Trata-se, antes, de uma visão de mundo do cineasta e de uma liberdade de expressão própria da recriação de uma obra de arte.

Mas, será se não é possível trazer Shakespeare para o cinema com o espírito renascentista e, ao mesmo tempo, criar uma obra rica e inovadora sob o ponto de vista da linguagem fílmica? Basta assistirmos às “adaptações” de Kurosawa e Orson Welles (refiro-me especificamente à Ran, Trono manchado de Sangue, do diretor japonês e Macbeth, do americano) e então veremos que é realmente possível. E, ademais, trata-se de uma experiência extremamente importante para o universo do cinema de arte. Os cineastas, além de alargarem as possibilidades da linguagem fílmica, ajudam-nos a ler a obra de uma maneira mais rica e abrangente.

Peter Greenaway, na realidade, é movido por um espírito de originalidade que parece extrapolar os limites da criação artística. E sabemos o quanto é problemático o conceito de originalidade. Um termo surgido a partir de um Romantismo que supervalorizava a expressão do indivíduo – este geralmente visto como um gênio acima de todas as coisas. O diretor britânico, ao promover uma distorção da linguagem fílmica, torna-se um maneirista. Abusa de recursos como a sobreposição de telas, exagera na movimentação cênica dentro do plano (basta vermos o seu Calibã dançante - uma personagem que mais parece que está atuando em um musical da Broadway), cria uma confusão de ruídos e sons dessincronizados na trilha. Uma paisagem sonoro-visual que mais se coaduna com o espírito dionisíaco do Barroco.

Acredito que, se bem observarmos, o diretor inglês teme que sua obra seja apontada como uma narrativa linear sem recursos fílmicos. Ele foge do veementemente do rótulo de autor de “cinema romanesco” e, portanto, não quer ser, a nenhum momento, um mero adaptador. Nesse sentido, sua postura é louvável. Filmar é correr risco. É melhor errar do que ser um covarde. E, na verdade, o que mais se vê nas telas de cinema, nas últimas décadas, são “adaptações covardes” que visam tão-somente agradar o grande público. Obras como Odisséia (1997, direção de Andrei Konchalovsky) Dom (2003, direção de Moacyr Goés), Memórias Póstumas de Brás Cubas (2001, direção de Andrá Klotzel) e Hamlet (1990, direção de Franco Zefirelli), só para citar algumas, são exemplos da falta de ousadia e de inventividade fílmica. Não contribuem em nada para o cinema e muitas vezes nos conduzem a leituras totalmente equivocadas das respectivas obras literárias. Como bem nos dissera Anelise Corseuil[i]:

Existe uma cultura de adaptações fidedignas que pode ser extremamente problemática, uma vez que muitos filmes adaptados esvaziam-se de significado próprio, quando tendem simplesmente a reproduzir diálogos intermináveis. Esses filmes funcionam também para atender a audiências que querem consumir romances (predominatemente romances do século XIX) de uma forma mais facilitada. (pg. 369).

Por estes motivos, a “Última Tempestade”, de Greenaway, é uma obra importante. Isso porque é um filme que, constantemente, erra e arrisca. O artista procura manejar elementos estéticos e narrativos que não são muito experimentados pelo cinema feito para o grande público, como “quebras” da narrativa, sons aparentemente aleatórios e não sincronizados, imagens oníricas, montagens expressivas que não visam uma ordenação lógica e temporal dos planos visuais. Entretanto, tais elementos não fazem de Prospero's Books uma obra-prima, a meu ver.

É importante ressaltarmos que o diretor britânico não se limita a narrar cada cena que está na peça. Claro está que ele não almeja ser “fiel” (aliás, quanta falta de criatividade artística e preguiça intelectual se escondem atrás desta palavra!). A recriação de uma obra literária, como se sabe, não produz a semelhança com o objeto representado, mas sim a diferença. Se o cinema fosse uma arte apenas de reproduzir um texto literário, uma peça ou um discurso, não era necessário que existisse.

Peter Greenaway, com todos os problemas inerentes à sua obra, ensina-nos uma lição através de suas tempestades de sons e imagens: o cinema tem uma dicção própria e não deve se valer de uma obra apenas para agradar aos leitores da chamada “alta” literatura.  Contudo, não podemos fugir de uma questão central que realmente incomoda muitos interlocutores, creio: se por um lado o cinema tem uma expressão própria e não pode ser confundido com outra arte (uma vez que é um sistema de signos autônomo), por outro uma obra literária também não pode ser apenas um mero pretexto para que os cineastas se dissolvam em experimentos cinematográficos exageradamente estetizados. “A Última Tempestade”, de Greenaway, anda nesta linha tênue.



[i] In: Thomas Bonnici & Lúcia Osana Zolin . (Orgs.) Teoria Literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas. Maringá: EDUEM, 2003.


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