UMA CONVERSA SOBRE OCTAVIO PAZ*
(Alfredo Werney)
ANTES DO COMEÇO
Ruídos confusos, claridade incerta.
Outro dia começa.
Um quarto em penumbra
e dois corpos estendidos.
Em minha fronte me perco
numa planície vazia.
E as horas afiam suas navalhas.
Mas a meu lado tu respiras;
íntima e longínqua
fluis e não te moves.
Inacessível se te penso,
com os olhos te apalpo,
te vejo com as mãos.
Os sonhos nos separam
e o sangue nos reúne:
Somos um rio que pulsa.
Sob tuas pálpebras amadurece
a semente do sol.
O mundo
No entanto, não é real,
o tempo duvida:
Só uma coisa é certa,
o calor da tua pele.
Em tua respiração escuto
as marés do ser,
a sílaba esquecida do Começo.
(Trad. De Antônio Moura)
ESCRITO COM TINTA VERDE
A tinta verde cria jardins, selvas, prados,
folhagens onde gorjeiam letras,
palavras que são árvores,
frases de verdes constelações.
Deixa que minhas palavras, ó branca, desçam e te cubram
como uma chuva de folhas a um campo de neve,
como a hera à estátua,
como a tinta a esta página.
Braços, cintura, colo, seios,
fronte pura como o mar,
nuca de bosque no outono,
dentes que mordem um talo de grama.
Teu corpo se constela de signos verdes,
renovos num corpo de árvore.
Não te importe tanta miúda cicatriz luminosa:
olha o céu e sua verde tatuagem de estrelas.
(Trad. Haroldo de Campos)
Olá meu irmão! Veja os poemas que eu colhi na internet por estes dias. Para mim são pérolas e me deixa inundado de poesia que eu nem penso mais na coesão e no arranjo do texto. É pura sensação. A gente sente realmente o sangue correr e escorrer nas veias. Isso sim nos faz repensar a função da poesia e como ela pode tornar as coisas mais belas e menos simétricas. É como o próprio Octavio Paz nos diz: antes do começo. Antes de se criar categorias, antes de se criar conceitos e preconceitos, antes de se criar esquemas. Talvez ele se remeta a um tempo em que a poesia fazia parte do corpo, era como alimento para os povos, era como um religioso em oração: mais corpo do que mente. Ou melhor: mente e corpo ocupando um mesmo lugar. Um tempo em que não existiam teorias literárias para colocar o texto numa armadura, nem aquelas interpretações (muitas falsamente hermenêuticas) que apenas buscam se aprofundar e se aprofundar, mas pouco se preocupam em sentir a força do texto. Este poema “Antes do começo” me leva a experimentar as coisas pela primeira vez e julgar um texto poético pela primeira impressão que ele me causa. Textos escritos dessa forma servem de antídoto contra essa chatice de se transformar a poesia num conjunto de fórmulas e esquemas.
Não conheço muito bem a poesia de Octavio Paz, até mesmo porque há muita coisa que ainda não foi traduzida para nossa língua, mas de já percebo que esse poeta tem uma imaginação tão fértil, tão viva que é capaz de transcender qualquer teorização e categorização do texto. A sensação que tive ao ler estes poemas é a mesma que tenho quando leio o "guardador de rebanhos", de Fernando Pessoa: um poema regido pela força da imaginação, não por correntes filosóficas ou literárias, ou o que quer que seja. É difícil, não sei se você concorda, um poeta conseguir fixar estes efeitos na gente. É um efeito parecido com o da música, que nos faz experimentar diversas sensações antes de nos dizer alguma coisa; que parte da pura expressão, que nasce antes dos conceitos. Não sei se me compreendes, mas não estou querendo desqualificar a poesia que busca o rigor da forma e das idéias, a coerência acima de tudo. Mas é que vejo que a maioria do poetas que leio realmente não me faz experimentar coisas novas.
Por exemplo: quando nos propomos a ler Drummond, parece que nossa cabeça já vai carregada de mil e uma teorias (sei que a “culpa” disso não é de Carlos, obviamente). Começamos logo a analisar as estruturas e a visão de mundo do poeta, às vezes antes de sentir o ritmo do poema e o sabor de suas imagens. Quando vamos ler H. Dobal, sobretudo nós que somos piauienses, de início procuramos analisar como ele se comporta dentro da tradição da poesia piauiense e como ele “representa” sua terra. Quando vamos ler Cabral, parece que já vamos imbuído de uma visão (já cristalizada) de que se trata de um poeta-arquiteto que constrói o poema com suor no rosto (como se isso fosse tudo em poesia e o poeta fosse um mero operário da forma). Graças a Deus, não consigo pensar em nada (exageros à parte) quando leio Alberto Caeiro, Hebert Helder, alguns poemas de Rimbaud, e agora estes poemas de Paz. Salve a poesia de Octavio!
*Trechos de uma conversa com Wanderson Lima (retirado de um email).
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