GODARD E O CINEMA VAZIO
Alfredo Werney
Há filmes atuais que parecem já ter nascido velhos. Mas há também aqueles que se renovam em cada exibição a que assistimos, embora fazendo parte de uma cinematografia mais antiga. Acossado, de Jean-Luc Godard, está incluso nessa última categoria. Sua modernidade não está centrada simplesmente nas suas experiências formais: cortes abruptos na montagem, choque de diálogos, luz aleatória, roteiro improvisado e música irônica. A leitura de mundo empreendida por Godard nessa obra é muito atual, pois ele filma um ambiente que muito se assemelha com o caos de sentido da nossa vida contemporânea.
O homem, por não ter mais uma base moral com a qual ele guie e pese suas ações, depara-se com o vazio da existência. Vazio este que pode levá-lo a agir de maneira violenta (num sentido bem amplo) com o mundo que o cerca. Michel Poiccard (Jean-Paul Belmondo), quiçá o personagem mais antipático do cinema mundial, é esse homem para quem nada mais importa: dar um tiro em alguém ou dar um beijo não se trata de experiências tão distintas para a sua mente. Ele rouba, mata, engana e estas atitudes não parecem pesar sobre sua consciência. E assim ele age, não porque seja cruel e sinta prazer com tudo isso, mas porque se trata apenas de uma maneira de preencher sua existência oca, “dessemiotizada”. Patrícia Franchini (Jean Seberg), jornalista americana e envolvida amorosamente com Michel, não é tão diferente: não sabe se está apaixonada, ajuda o companheiro a roubar carros e não se preocupa com o que poderá acontecer, não demonstra preocupação ao saber que está namorando em sua casa com um assassino.
Acossado, para além de uma experiência fílmica inovadora, é uma película reveladora de um mundo muito próximo do que vemos hoje: um universo em que as identidades e as relações amorosas são líquidas e vazias. Um ambiente tão carente de sentido, que nem sabemos ao certo quem amamos, do que gostamos, para onde viajaremos, para que nos relacionamos com os outros. Os longos e cansativos diálogos em planos-seqüência entre o casal nos mostram este ambiente do qual falamos. A construção das próprias cenas (dos diálogos banais) nos faz perceber como é a vida para aquele casal: uma mera passagem esvaziada de tudo.
A música de Martial Solal nos revela muito do que se vê na tela. A composição é um jazz e parece estar sempre ironizando as personagens. Longe de querer reforçar as situações dramáticas, ela serve como um contraponto. Em algumas cenas os instrumentos musicais alteram o andamento, em outras a música aumenta de volume, em outras pára: tudo isso de uma forma que nos passa a impressão de algo aleatório e não compromissado com a camada visual do filme (mas, no fundo, a música tem consciência do seu papel). Realmente, trata-se de uma maneira bem diferente de se pensar a trilha musical de uma obra fílmica. E diga-se: a composição do pianista francês é de grande contribuição (poderíamos dizer "imprescindível") para nos revelar o vazio da narrativa fílmica.
Vazia também ficará a sala de cinema que exibir Acossado para um público que espera ver na tela tão-somente personagens com os quais facilmente se identifiquem, uma música melodiosa e reforçadora do conteúdo visual, atores simpáticos, uma narrativa contínua e cheia de emoção e um mundo harmonioso em que tudo se encaminha para um final revelador e sem tensões – como se vê no cinema de hoje, em grande parte feito apenas para o consumo rápido. É contra esse mundo e essa gramática fílmica que atua a genialidade de Godard.
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