sábado, 18 de fevereiro de 2012




NA ESTRADA COM DOUGLAS MACHADO*

(Por Alfredo Werney)

            Douglas Machado, o cineasta mais atuante do Piauí, tornou-se, indubitavelmente, um dos importantes documentaristas brasileiros da atualidade.  Sua intensa produção fílmica, aliada a um cuidado estético e a uma visão artística ampla (que reúne em seu bojo conhecimentos de literatura, teatro, quadrinhos e outras artes), tem sido aclamada por muitos apreciadores da sétima arte. Dentre os documentários dirigidos por Douglas, podemos citar: H. Dobal - Um Homem Particular; O Sertãomundo de Suassuna; Marcos Vinicius Villaça - O Artesão da Palavra; Luiz Antônio de Assis Brasil - O Códice e o Cinzel; Alberto da Costa e Silva - O Retorno do Filho e Um Corpo Subterrâneo. A obra fílmica do teresinense tem sido discutida, com frequência, em ciclos de estudos, em congressos, em cineclubes, além de ser abordada em artigos, ensaios e dissertações nas academias.

            Recentemente, o clube de vídeo “Olho Mágico”, importante cineclube do Piauí, exibiu em sua programação o documentário Na estrada com Zé Limeira (2011), dirigido pelo referido cineasta piauiense e produzido por Gardênia Cury. Embora estivesse vendo a película pela primeira vez, logo percebi que o documentário produzido pela “Trinca filmes” é um desses que fica colado em nossa memória. Com uma câmera acoplada ao corpo, através de um processo criado pelo próprio Douglas, o diretor percorreu várias cidades do sertão nordestino, especificamente nos estados da Paraíba e do Pernambuco, visando reconstruir (ou construir?) a memória de Zé Limeira – figura mítica e aclamada por todo o universo do repente. A película, gravada em três semanas apenas, foi baseada no livro de Zé Limeira, o poeta do absurdo, de autoria do jornalista e poeta paraibano Orlando Tejo. O livro, composto de ensaios, recria a figura mitológica do cantador nordestino. Para alguns, o livro é que, de fato, inventa a personagem. Dessa forma, para estas pessoas os ensaios de Tejo não são apenas recortes biográficos, mas são textos carregados de elementos próprios da criação literária.

            Importante notar que, em boa parte do filme, parece que somos nós, o público, que estamos a captar as imagens daquelas estradas e paisagens bonitas do Nordeste. Esta é uma das marcas estilísticas da obra: o filme é gravado do ponto de vista do expectador, embora em algumas tomadas seja-nos possível visualizar o diretor com sua câmera colada ao corpo. Recurso   este que abre mão da “câmera subjetiva”, muito presente no filme, e cria certa objetividade – como se o diretor quisesse realmente deixar claro a maneira como está sendo produzida sua obra fílmica.

            Diferente dos tradicionais documentários – nos quais se procura esconder o processo de feitura para se expor na tela apenas o “essencial” – Na estrada com Zé Limeira percorre outros caminhos. Neste filme, o processo de feitura faz parte de sua própria estética, da sua própria carnadura. A obra é o próprio momento do fazer artístico. Daí a abundância de planos-sequência, o que engendra na película uma fluência sonora e visual de grande expressividade artística. Este processo de construção cinematográfica – no qual a câmera se desloca constantemente como se vagueasse sozinha por várias estradas do sertão – remete-nos à própria vida do cantador Zé Limeira que, segundo depoimentos de músicos e pessoas de sua época, levava uma vida de nômade, percorrendo as estradas da Paraíba e de Pernambuco.

            É interessante notarmos, ao vermos o documentário, que pouco importa para Douglas Machado a veracidade das informações colhidas durante suas viagens – pelo menos isso é o que me transparece. O que mais conta, dessa forma, é a riqueza da imaginação presente na cultura nordestina, elemento caro à literatura de um Guimarães Rosa e de um Jorge de Lima. Na estrada com Zé Limeira não se trata, pois, de uma reportagem televisiva, como fazem a maioria dos documentários presentes no mercado cinematográfico, em que se busca um afastamento do diretor e do público a respeito de determinado assunto. Na obra de Douglas, como um todo, o mítico se mistura ao real histórico, a ficção se mescla à informação, a câmera objetiva se confunde com momentos de pura subjetividade e poesia fílmica. Douglas não se deixar levar por prosaísmos ingênuos e pela ideia tão valorizada de “imparcialidade”, por isso ele próprio está presente a todo o momento no filme. Participa da realização de perguntas, do processo de filmagem, da narração em off, além de outras atividades de produção. Sua câmera trêmula, aparentemente descompromissada, nos leva a viajar pela força poética da imagem. Documentar e fabular, na visão do diretor, são atividades que se mesclam. São, na verdade, o mesmo fenômeno.

            Para aqueles que vêem o documentário tão-somente como um meio de estar informado das coisas e espera, dessa maneira, um rigor formal e um “distanciamento” da câmera (como nos jornais televisivos e nas reportagens demasiadamente frias e sem alma), não se deslumbrará com a película de Douglas. A visão do cineasta teresinense, em harmonia com a dos grandes documentaristas como Eduardo Coutinho, é a de que documentário não é mera informação, mas sim uma arte cinematográfica específica que está repleta de momentos de gratuidade poética (basta lembrarmo-nos da encantadora cena em que aprece um velho que reza e vagueia pelas ruas com um santo na mão numa cidade da Paraíba) que se propõe a construir uma visão de mundo e experimentar as possibilidades estéticas da arte cinematográfica.

            Na estrada com Zé Limeira, no fundo, não é um simples “resgate” da memória nordestina e do repente, como pode parecer, à primeira vista, aos expectadores menos atentos. Não é também uma homenagem ingênua a Zé Limeira. O diretor piauiense não trata o poeta como um gênio de uma época (um clichê que a maioria dos documentaristas não consegue se desvencilhar ao tratar destes personagens míticos), mas sim deixa que as pessoas que conviveram com o violeiro realizem seus comentários e teçam uma imagem dele. Há na película, inclusive, alguns comentários desfavoráveis ao repentista. Lembremo-nos da fala de Seu Zé Inácio, um senhor que reside no Sítio Tauá: “Ele era um cantador muito afamado, mas os versos dele quase tudo era de pé quebrado”, indicando, possivelmente, que Limeira não era tão bom o quanto se afirmava na época. Este fato mostra que a presença do diretor não é invasiva, já que ele permite que os entrevistados se expressem e participem do próprio processo artístico. Em Um corpo subterrâneo, de forma louvável, Douglas levou ao extremo este recurso, quando entregou a própria câmera para que os entrevistados realizassem as tomadas e expressassem suas emoções através das lentes.

            O documentário de Douglas Machado sobre o cantador nordestino trata-se de uma experiência cinematográfica de grande inventividade, assim como o já citado Um corpo subterrâneo. O que se poderia esperar de uma obra cinematográfica feita no sertão nordestino sobre uma fantástica figura do repente? Violas, mandacarus, aboiadores, paisagens secas, pobreza e um conjunto de imagens e discursos que se inventaram a respeito da região. Mas não é esse o tom da obra de Douglas, ainda que o cineasta recorra, em alguns momentos, a tais clichês. Mas quando recorre a estas ideias repisadas, ele consegue remanejá-las e, dessa maneira, fugir do lugar-comum.

            Lembro-me de uma sequência do filme que é muito sugestiva: Douglas liga para o celular de um dos entrevistados e conversa sobre as memórias do cantador. A conversa dos dois segue e serve de “fundo musical” para uma paisagem bucólica, em que vemos bois e árvores em uma bonita fazenda. Trata-se de uma cena que, certamente nas mãos de um diletante ganharia um dedilhado de viola ou um típico baião nordestino. Entretanto, a cena teve como “trilha sonora” uma despojada conversa de celular, o que insere um elemento “estranho” na paisagem visual e sonora do sertão nordestino. Sobre este aspecto, é importante dizer que a econômica e discreta trilha musical, composta por Sérgio Matos, respeita o estilo do diretor e não apela para o pitoresco. É monofônica e não se utiliza das cansativas melodias construídas a partir das escalas modais, como se costuma ouvir nos filmes que representam a figura do nordestino.

            Na estrada com Zé Limeira é uma dessas obras que nos coloca em um espaço movediço, no qual não sabemos, ao certo, onde estamos pisando. Ficção, memória, religiosidade, poieses e informação se amalgamam e juntas criam um mundo cinematográfico que se centra na esfera da sensibilidade e na sinestesia das imagens, como Douglas já nos mostrara em seu transcendental Cipriano (2001).






* texto publicado na Revista Universitária do Audiovisualhttp://www.ufscar.br/rua/site/?p=9422

3 comentários:

  1. "ciclos de estudos, em congressos, em cineclubes, além de ser abordada em artigos, ensaios e dissertações nas academias".

    Quais ciclos? Quais congressos? Quais artigos? Quais ensaios? e Quais dissertações? Quem são os estudiosos que estão tendo a obra do piauiense Douglas Machado como objeto de estudo? Gostaria de saber,pois, fiquei curioso?

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  2. NÃO SEI QUEM FEZ A PERGUNTA, MAS ACHO BOM SEMPRE QUE AS PESSOAS SE IDENTIFIQUEM, POIS O DEBATE SE TORNA MAIS CLARO E SINCERO. EU DEVERIA TER CITADO MESMO, POIS DÁ A IMPRESSÃO QUE FALO BEM DE DOUGLAS SÓ PELO FATO DE ELE SER PIAUIENSE. MAS NÃO É ISSO. RESPONDENDO...

    até onde me lembro, DOUGLAS JÁ FOI TEMA DE:

    *CICLO DE PSICANÁLISE (ONDE HOUVE UMA PALESTRA SOBRE CIPRIANO, MINISTRADA POR MIM)

    * MONOGRAFIA DE CONCLUSÃO DE CURSO DE EDUCAÇÃO ARTÍSTICA (UFPI) (DANILO MEDEIROS)

    * VÁRIOS ARTIGOS NA INTERNET E EM LIVRO:

    REVISTA RUA (TEXTO SOBRE UM CORPO SUBTERRÂNEO, TEXTO SOBRE "NA ESTRADA COM ZÉ LIMEIRA")

    INÚTIL PAISAGEM- ARTIGO SOBRE "CIPRIANO"

    BLOG "O FAZEDOR"- TEXTO SOBRE CIPRIANO

    PIAUÍ FAZ SEU PRIMEIRO LONGA METRAGEM- JORNAL O ESTADÃO

    o afável senhor das letras- sobre o documentário "Wilson martins: a consciência da cítica"

    CIPRIANO, A NÃO-INFÂNCIA DO CINEMA DO PIAUÍ - NO LIVRO "REENCANTAMENTO DO MUNDO: NOTAS SOBRE CINEMA

    A TRILHA DE CIPRIANO: TENSÃO E POLIFONIA- REVISTA AMÁLGAMA

    Estética, sonho e morte. Cipriano: uma produção piauiense

    Cipriano- Portal Entretextos

    * TEMA DE MESTRADO EM CONCLUSÃO(UFPI) DE ADRIANA GALVÃO, QUE ESTUDA O CINEMA DO PIAUÍ

    * SEMANA DOUGLAS MACHADO- CLUBE DE VÍDEO DE TERESINA

    * PALESTRAS:

    O CINEMA DE DOUGLAS MACHADO: CIPRIANO - UFPI, 2008

    CIPRIANO DE DOUGLAS MACHADO (CENTRO DE ESTUDOS DE PSICANÁLISE)


    * ENCONTRO

    ORALIDADE, MEMÓRIA E CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA DO SERTÃO NO
    FILME CIPRIANO. José Luís de Oliveira e Silva
    trabalho apresentado no X Encontro de História Oral (UFPE)

    * CLUBES DE VIDEOS QUE REALIZARAM DEBATES E HOMENAGEM A DOUGLAS:

    CLUBE DE VÍDEO DE TERESINA

    CLUBE DE VÍDEO OLHO MÁGICO

    CLUBE DE VÍDEO "PRAZER DOS OLHOS" (CASA DA CULTURA, 2006)

    * ALÉM DISSO SEUS FILMES JÁ FORAM LANÇADOS E DEBATIDOS EM VÁRIAS CIDADES BRASILEIRAS COMO BRASÍLIA, RIO DE JANEIRO, CURITIBA, RIO DE JANEIRO (NA ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS), ETC



    UM ABRAÇO!!!!!!

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  3. ah, desculpe. não tinha visto seu nome. Vejo que se identificou. um abraço!

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