O LAGO MÍTICO DE PAULA TAVARES*
Alfredo Werney
No lago branco da lua
lavei meu primeiro sangue
Ao lago branco da lua
voltaria cada mês
para lavar
meu sangue eterno
a cada lua
No lago branco da lua
misturei meu sangue
e barro branco
e fiz a caneca
onde bebo
a água amarga da minha sede sem fim
o mel dos dias claros
Neste lago deposito
minha reserva de sonhos para tomar
(In: O lago da lua, 1999)
Paula Tavares, nascida em Lubango (região sul de Angola) é uma das vozes mais altas da poesia africana da atualidade. Ela representa uma reestruturação da visão de mulher que, por um longo período, foi instituída na literatura angolana: “o feminino como matriz do nacional, da concertação e da força comunitária”, como nos disse Inocência Mata em seu ensaio “Passagem para a diferença”. Sua escrita elimina, portanto, os sentimentalismos e os conteúdos de ressentimento e nos revela o erotismo, a valorização do corpo da mulher.
No poema “No lago branco da lua [...]”, a escritora engendra uma noção de tempo circular, mítico. Esta construção do tempo se concatena perfeitamente com os rituais e a religiosidade de sua região, península da Huíla. Se observarmos as camadas visuais, observaremos que na própria forma do conteúdo de seus poemas se evidencia esta visão de mundo, através da reaparição de palavras, de idéias, de estruturas e, algumas vezes, de estrofes praticamente inteiras. O poema acima transcrito, originalmente sem título, é um dos mais significativos da poetisa angolana, além de ser também um dos mais estudados pelos pesquisadores nas academias.
De uma forma geral, “No lago branco da lua [...]” opera com as oposições complementares: ciclo da natureza/ ciclo da mulher; natureza humana/ natureza não-humana. O eu-lírico mistura-se com a natureza e juntos formam um todo indissociável. Há, portanto, uma relação de conjunção entre sujeito (representado pela mulher) e objeto (representado pela natureza):
No lago branco da lua
misturei meu sangue
e barro branco
e fiz a caneca
onde bebo
a água amarga da minha sede sem fim
o mel dos dias claros
Neste lago deposito
minha reserva de sonhos para tomar
Observemos que a junção entre o sangue da mulher (elemento humano) com o barro (elemento não-humano) gera outro: a caneca em que se bebe a água amarga. Esta caneca é fruto dos elementos da natureza com a transformação humana, o que expõe no texto mais uma oposição: natureza/ cultura. Há nesse poema, dessa forma, a identificação da mulher como força motriz, como criadora do mundo. Com relação ao barro, se pensarmos na mitologia cristã, pode-se dizer que é o componente que gera a vida e, portanto, pode ser associado à criação. Lembremos do enunciado presente no livro de Gênesis: “Com o suor de teu rosto comerás teu pão até que retornes ao solo, pois dele foste tirado. Pois tu és pó e ao pó tornarás” (Gn 3, 19).
Nos versos “Misturei meu sangue/ e barro branco” visualizamos um sugestivo contraste entre duas cores, tópicos metafóricos recorrentes na obra da escritora africana. A cor branca e vermelha – que, usualmente, estão associadas em nossa cultura (respectivamente) à inocência/ pureza e ao desejo/paixão – ratificam a idéia de uma construção poética por opostos. Embora estes elementos se confrontem, eles se equilibram de forma tensa, já que fazem parte de um mesmo processo de construção da caneca.
Em termos mais concretos, podemos afirmar que o poema trata da relação entre a mulher africana e o seu país, explicitando o papel fundamental da mulher na construção da cultura. O discurso poético encontra-se em primeira pessoa, criando, dessa forma, um efeito de subjetividade. Mas devemos compreender que, embora escrito em primeira pessoa, o discurso se estende às mulheres do Lubango, e mesmo de toda a África. É importante notar que Paula Tavares não trata, em sua lírica, apenas de suas experiências pessoais, pois sua voz, embora se debruce sobre o corpo e a individualidade feminina, é coletiva
Percebemos também, no que se refere às camadas discursivas do poema, que o eu-lírico procura inverter o discurso sexista já cristalizado em sua terra: a mulher como um mero complemento do homem ou, nas próprias palavras da escritora, a mulher como “uma prótese perfeita, maldita e necessária” . Sabe-se que o discurso falocêntrico é muito forte na região sul de Angola (ainda ruralista e de costumes tradicionalistas) e muitas mulheres, de maneira silenciosa, ainda se sujeitam a situações de intensa violência. A estratégia da autora, dessa maneira, é a composição de uma literatura que enfoca o erotismo da mulher. Como nos disse Mailza Toledo e Souza, somente assumindo-se como um ser sexual a mulher poderá se assumir como um sujeito social que contribui ativamente para girar as engrenagens do mundo.
Ao observarmos a estruturação de “No lago branco da lua [...]”, verificamos facilmente que ele é repleto de paralelismos, repetição de versos e de palavras. Tudo isto é feito de um modo que reforça a idéia de circularidade do texto (como o tempo mítico, o ciclo menstrual da mulher, o ciclo da água, o ciclo da própria vida):
No lago branco da lua
lavei meu primeiro sangue
Ao lago branco da lua
voltaria cada mês
para lavar
meu sangue eterno
a cada lua
As idéias de oposição de que falamos estão expressas nos lexemas: branco/ sangue; lua (alto) / lago (baixo); amargo/ mel; água/ barro. Esta construção cria um efeito de sentido de alternância das coisas. Os termos também nos transmitem o sentido de duplicação. O próprio ato de estar na beira do lago é indicativo de dualismos: trata-se tanto de um lugar concreto (onde emana a água para lavar o sangue) como de um lugar mítico, onde se depositam os sonhos.
Para empreendermos uma análise da expressividade sonora de um poema é necessário que procuremos os procedimentos de repetição intencional de determinados sons, já nos disse Antonio cândido em “analise estrutural do poema”. Dessa maneira, somos levados a afirmar que a fluidez do lago, especificamente na primeira estrofe, manifesta-se através do uso da consoante constritiva lateral “l” e das assonâncias da vogal “a”:
No lago branco da lua
lavei meu primeiro sangue
Ao lago branco da lua
As vogais claras, que geram a sensação de leveza, e as flutuações da língua ao pronunciar a consoante “l”, tornam o discurso poético fluído e circular (idéias presentes no plano do conteúdo). A alternância entre a aliteração e a assonância gera um ritmo fluido. Esta construção rítmica é semelhante a da segunda estrofe e contribui consideravelmente para enfatizar o aspecto circular, além de mimetizar o próprio escorrer das águas do lago.
Elaborar uma “escrita feminina”, sem recorrer aos mesmos topoi e procedimentos estéticos da literatura tradicional de Angola, parece ser uma ambição de Ana Paula Tavares. “No Lago branco da lua [...]” é um exemplo desta ambição: o poema articula, como se pode observar, elementos das tradições orais de Angola com recursos poéticos próprios da modernidade.
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