SAMBANDO NA CARNIFICINA
Alfredo Werney
(Aos meus amigos, os professores Mário, Ítalo, Wilbert e
Elkejer).
Sempre
que se fala em canção vem logo a nossa mente a ideia de uma melodia que se
articula com uma letra e juntas formam um todo significativo. E é bem verdade:
o núcleo de sentido de uma canção, como observou o semioticista Luiz Tatit, é
exatamente a melodia e a letra. Mas o próprio pesquisador fez questão de
mencionar em seus livros a importância de outros elementos construtores de
sentido, tais como a interpretação, a instrumentação, a harmonia e o arranjo. Esses
elementos, embora não façam parte diretamente do corpo de sua teoria, são
frequentemente aventados. Por sinal, muitos dos discípulos do músico paulista
deram prosseguimento ao longo projeto de se estudar categorias semióticas que
estão para além desse núcleo (texto e melodia).
O
fato é que eu não queria começar uma simples crônica musical com uma dicção
excessivamente teórica. Mas foi o jeito, confesso que não encontrei outra
saída. De qualquer maneira, essa breve explanação da teoria semiótica da canção
foi simplesmente para mostrar que o arranjo, ainda que não seja o foco
principal do trabalho do cancionista, desempenha um papel de grande importância
na construção de seu discurso músico-literário. Isso é um assunto que, na
prática, todo músico já sabe, mas nossa escuta musical, na maioria das vezes, é
tão displicente e fragmentada, que deixamos de lado esta expressiva arte. Digo
isto porque o arranjo é um elemento tão especial para a música que alguns
chegam a tratá-lo como uma arte verdadeiramente autônoma. Paradoxalmente, ele é
um dos pilares do discurso musical, mas parece estar além dele. Existem, por
exemplo, grandes arranjadores que não se aventuram a compor três notas sequer
de uma simples cançoneta. Por outro lado, há excelentes cancionistas que nada
entendem dessa técnica. E existem músicos
completos, que dominam os dois ofícios, como Pixinguinha, Moacir Santos, Tom
Jobim, Wagner Tiso e Edu Lobo.
Agora
vamos ao assunto propriamente dito. Sempre que eu ouvia despretensiosamente o Sambô, aquela banda de samba misturado
com rock que surgiu em Ribeirão Preto-SP, não dava muita atenção ao seu
trabalho artístico, até mesmo porque não me dizia muita coisa. Em geral, achava
a voz do cantor desafinada e estridente, as soluções instrumentais repletas de
clichês sem graça, o ritmo repetitivo e sem variações de dinâmica e os arranjos
de mau gosto. No entanto, não era nada que me incomodasse profundamente.
Certa
vez, retornando de uma viagem rotineira com uns amigos professores – todos eles
pessoas de uma boa educação musical, mas há momentos na vida de pura descontração
em que a gente ouve de tudo – eu pude escutar no carro um disco por
inteiro da famigerada banda. Passei então a perceber muita coisa, juntamente
com os amigos, que eu não notava. A mais gritante delas foi o total
descompromisso daquele grupo musical com os arranjos. A maior parte do
repertório da banda consistia unicamente em canções consagradas que se
transformaram em sambas mais apressados. Uma música me chamou mais a atenção do
que outras: era a grave e bela canção da banda irlandesa U2, “Sunday Bloody
Sunday” – faixa presente no álbum War,
lançado no ano de 1983. Uma obra feita em tom de crítica política, descrevendo
a violência do “Domingo Sangrento”.
Na
versão original, a canção do U2 inicia com um ostinato (trechos musicais que seguem um padrão de repetição) da
bateira, que se assemelha ironicamente a uma marcha militar, principalmente
pelo uso da caixa. Logo após entra a guitarra, que faz um glissando na região aguda e toca um arpejo simples, criando a
sensação de algo circular. De forma sugestiva, o ritmo da bateira, casado com
um contrabaixo que executa células rítmicas fortes e em staccato, nos faz lembrar os disparos dos militares. Ouvimos
também, em algumas passagens, a guitarra executar notas longas e agudas que geram
um contínuo efeito de tensão (gritos de crianças em desespero?). Já a voz de
Bono mostra-se com um quê de lamento, de alguém que fala carregado de angústia.
Entram na música também outras vozes que cruzam com a do vocalista e criam uma
espécie de comunhão, dando o efeito acústico de um canto de coletividade. As
insistentes repetições do coro “Sunday Bloody Sunday” fazem com que o refrão
fique ressoando na memória, como se o eu lírico nos obrigasse a lembrar, a todo
o instante, a violência do evento narrado. A música gradativamente vai se
tornando mais intensa, até sofrer uma suavização da dinâmica, findando-se aos
poucos. O efeito geral produzido é muito bonito. É possível identificarmos, por
meio da organização dos sons, uma narratividade, uma descrição da paisagem
sonora do “Domingo Sangrento”. Isso porque, entre outros elementos de grande
expressividade (como a letra e a interpretação), estamos diante de um arranjo bem
estruturado, inventivo, que agrega muitas informações ao conteúdo do texto
poético.
Muitos
já devem saber, mas insisto em fazer um brevíssimo resumo do acontecimento. O “Domingo
Sangrento” foi um confronto entre católicos e protestantes ocorrido em
Londonderry, na Irlanda do Norte, em janeiro de 1972. Milhares de
manifestantes, muitos deles jovens, protestavam pelos direitos civis de
católicos. Além disso, postavam-se contra a dura política do Governo Britânico,
que prendia, sem ordem judicial e de maneira indiscriminada, pessoas suspeitas
de conspiração contra as organizações governamentais. Na ocasião, tropas
britânicas dispararam contra os manifestantes, que estavam desarmados, o que
deixou catorze (algumas fontes afirmam ter sido treze) católicos mortos e dezenas
feridos. Dentre as pessoas feridas havia mulheres. Foi um episódio trágico da História
da Irlanda, país que ainda hoje enfrenta problemas de convivência social entre
comunidades católicas e protestantes.
E
o que tudo isso tem a ver com o tratamento que o Sambô deu a “Sunday Bloody Sunday”? Expliquemos. Essa música, que
virou um dos grandes sucessos do U2 e, de certa maneira, um símbolo da dor
coletiva de uma nação, foi convertida num samba agitado e brejeiro. Através do
arranjo, modicou-se o andamento, o fraseio e o ritmo. O acompanhamento
instrumental – executado por banjo, percussão, bateria e teclados – ficou
totalmente afastado do caráter e da concepção musical da composição do U2. Além
disso, a versão contou com o “auxílio luxuoso” da interpretação de Daniel San (um
cantor de voz nasalizada e de péssima dicção) que expressou em sua performance, do primeiro compasso até a
última pancada do surdo, uma alegria irradiante.
Foi
a partir de então que comecei, seriamente, a me indagar: Como é possível uma
banda dar uma dimensão festiva e eufórica a uma obra que trata de uma página
tão triste da História da Europa? Como se pode fazer um arranjo de uma canção
originalmente tão grave e melancólica, com o intuito de torná-la um canto de
celebração da vida noturna e um convite ao rebolado? Para ser sincero, eu até
acho que os integrantes do Sambô,
assim como a maior parte de seu público,
devem saber, pelos menos de forma superficial, o que se passa no conteúdo da
letra de “Sunday Bloody Sunday”. O que eu tenho certeza é que esses músicos nada
compreendem sobre a força de sentido que um arranjo pode produzir (refiro-me principalmente
à gravação ao vivo em DVD). Não entendem
que esse componente pode transfigurar conteúdos, dar um novo caráter ao
discurso do compositor, induzindo o ouvinte para leituras totalmente
equivocadas do texto poético. E mais ainda: que o mau emprego dessa técnica pode
resultar em efeitos de sentido catastróficos. Musicalmente, o grupo também já
conseguiu borrar outros clássicos do rock, como “Satisfaction” (The Rolling
Stones) e “Rock and Roll” (Led Zeppelin). O resultado talvez tenha sido um
pouco menos desastroso, já que são obras que não tratam de dramas coletivos.
Outra
opção bastante equivocada, a meu ver, foi a escolha do samba para representar o
universo angustiante de “Sunday Bloody Sunday”. Lembremos que o samba é uma confluência
de expressões, uma síntese entre ritmos de raízes africanas que aportaram na
Bahia e ritmos urbanos do Rio de Janeiro (sobretudo o maxixe e o choro). Desde
sua origem – recordemos daquele que é considerado o primeiro do estilo a ser registrado,
“Pelo Telefone” (1917) – esse gênero tem uma estreita relação com a
malandragem, com a euforia dos morros cariocas, com o espírito deliberadamente
dionisíaco. É evidente que há sambas tingidos com uma tonalidade mais soturna e
dramática, como alguns clássicos do samba-canção. Mas esses são exceções. No
geral, ele é ainda visto como uma espécie de panaceia para todos os dissabores da
vida social, como se constata na bela composição “A voz do morro”, de Zé Keti:
“Eu sou o samba / Sou natural daqui do Rio de Janeiro /Sou eu quem levo a
alegria/ Para milhões de corações brasileiros”.
Quando
se transforma uma obra musical que versa sobre uma tragédia coletiva num pagode
qualquer feito para um público em estado de êxtase se saracotear em uma casa de
shows, há nisso um desrespeito que extrapola a esfera da estética musical. Honestamente,
não desejaria que minhas palavras soassem com um tom muito moralista (talvez eu
não consiga), mas vejo nisso consequências éticas. Não é purismo de minha
parte, nada tenho contra ousadias musicais. Estou certo de que, muitas vezes,
um arranjo bem pensado pode despertar o interesse do interlocutor por uma
canção que, a princípio, ele nem ligava tanto. Sei também que o tratamento dado
pelo Sambô à composição do U2 não se trata,
é óbvio, de uma possível ironia, pastiche ou paródia – o que ultrapassaria as
fronteiras da sensatez.
O
caso aqui é bem diferente. Basta que vejamos, em uma tradução literal e sem
preocupações poéticas, o que diz um trecho da letra da música do U2: “Garrafas quebradas sob os pés das
crianças / Corpos espalhados num beco sem saída / Mas não vou atender ao clamor
da batalha/ Ele me encurrala, me encurrala/ Contra a parede / Domingo, domingo
sangrento”. Sinceramente, é difícil ver um texto doloroso como esse, que trata
de uma tragédia que não sai da memória do povo irlandês, reduzir-se a uma festa
carnavalizada. É demasiado perverso ver inúmeros rostos felizes rebolando aos
sons dos guizos do pandeiro e cantando em uníssono: “Domingo, domingo
sangrento!”.
Voltemos
agora para o universo do arranjo musical. Dá para notarmos, se fizermos um
paralelo entre a faixa original da banda irlandesa e a catastrófica versão feita
pelo Sambô, a dimensão que o arranjo
ocupa na construção de sentido do discurso musical. Ele não é mera roupagem. Está
para a linguagem musical como a fotografia está para o cinema, pois tem um
poder de criar climas psicológicos, de despertar sensações, de produzir efeitos
sobre nossa sensibilidade. Ao se alterar o andamento, a articulação das notas e
o ritmo de uma música, inserir notas e timbres sem uma intenção estética clara,
o arranjador pode trazer graves consequências para o sentido da canção. Isso se levarmos a música popular a sério e
não como um simples entretenimento de fim de noite, como o fez a banda do
estado de São Paulo. Quem aprecia e estuda a rica tradição da música popular do
Brasil sabe que ela é muito mais do que uma forma de catarse coletiva. Ela é um
espaço de fusões, de debates de ideias, de exposição de nossas contradições. A
MPB, desde o surgimento do lundu e o maxixe, tem se mostrado um terreno fértil,
por meio do qual podemos compreender de forma mais orgânica a cultura
brasileira.
E
ainda há muitos ouvidos desavisados que acreditam que o Sambô é uma banda cult, porque
os músicos propõem-se a fazer “releituras” de clássicos da música brasileira e
estrangeira, mesclando o pop e o rock com o samba. Na realidade, os que escutam
de uma forma descuidada, podem ter a impressão de que esse grupo musical,
através de fusões, criou uma linguagem sonora própria e alternativa. Puro
engano! Não quero dizer que a banda não tenha bons músicos (ela tem), mas essa
ideia de hibridismo e fusão na música brasileira há muito tempo não é mais novidade.
De forma sistemática e intencional, esses procedimentos surgem na MPB desde o
balanço de Jorge Ben e do radicalismo da Tropicália (na década de 1970). Na
década de 1990 esse espírito é igualmente retomado, com algumas reconsiderações
estilísticas, pelo movimento “Manguebeat”.
Trilhando
por outros caminhos, o que o Sambô faz
é apenas misturar instrumentos que pertencem a gêneros musicais diferentes (por
exemplo: colocar uma guitarra distorcida num samba tradicional, ou um banjo e
um cavaquinho no meio de um rock padrão). No rigor do termo, não há hibridismo.
O que há é um amontoado de timbres que se mesclam, muitas vezes desordenadamente.
Seria uma espécie de “hibridismo” empobrecido e facilitado, feito para causar
um falso impacto, pelo fato de se mostrar exótico. Um sintoma muito comum do esvaziamento
linguístico e cultural que se incrustou na atual música brasileira.
É
inadmissível que um grupo musical, que possui um público e uma visibilidade na
mídia considerável, cometa um deslize tão assombroso. Não faltou a esse grupo somente
competência musical, mas bom senso estético, inteligência e consciência da
força comunicativa que a canção possui. E, além de tudo isso, faltou ética. Um cristão,
por mais rasa que seja sua religiosidade, sabe que não se pode zombar,
perversamente, das desgraças alheias. Perdoem-me pelo exagero – exagerado que sou
– mas, ao ver em DVD o ridículo arranjo do Sambô,
tive a estranha sensação de estar ali, ao lado daquele público insano, sambando
em meio a uma carnificina!
Faltou mesmo sensibilidade ao grupo. Ótimo texto, Alfredo!
ResponderExcluirAbrç
Faltou muita sensibilidade!
ResponderExcluirObrigado amiga pela visita...
Alfredo
Excelente Alfredo! Simplesmente perfeito!
ResponderExcluirValeu professor...
ExcluirCuidado pra não tocar essa música em teu cavaco rsrsrsrsr
Parabéns pelo excelente texto,grande Mestre Alfredo Werney.
ResponderExcluirValeu grande! Agradeço a atenção
ExcluirMeus cumprimentos, Alfredo, pela excelente análise. Viu o que, pra muitos, estava escondido: essa pagodização soa ridícula mesmo. Bem dito.
ResponderExcluirOlá amigo...Agradeço a leitura!
ExcluirGrande abraço
Meus cumprimentos, Alfredo, pela excelente análise. Viu o que, pra muitos, estava escondido: essa pagodização soa ridícula mesmo. Bem dito.
ResponderExcluirValeu amigo poeta...
ExcluirOs poetas tem ouvidos sempre afinados!
Olá turma, quem gostou do texto pode divulgar no facebook e em outras redes sociais...
ResponderExcluirValeu gente!
Alfredo Werney
O texto é muito bem escrito,como sempre.Não conhecia o grupo,nem a versão,só sei que não orna,como se diz no interior.
ResponderExcluirQuando a Elis (sempre ela) adequou o canto e arranjo com o texto-musical de ''Saudosa Maloca'' houve quem criticou,o ser humano é mesmo muito complicado.