
A RELAÇÃO TEXTO E MÚSICA: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES (Alfredo Werney)
I - PRELÚDIO
I - PRELÚDIO
As relações entre texto e música têm gerado discussões férteis, sobretudo após o surgimento de correntes literárias como o Simbolismo e o Romantismo - estilos de época que, ao que nos parece, estão pautados pela superioridade do aspecto musical em relação à lógica da sintaxe lingüística. Contudo, ainda existem poucos estudos abrangentes sobre essa ligação complexa entre melos e logos.
Este trabalho busca compreender, resumidamente, como as propriedades do som e os elementos da música são utilizados na construção do fenômeno literário. Primeiramente, explicaremos, de maneira didática, os elementos e as propriedades que estruturam a música. Posteriormente, discorreremos sobre o “contraponto” e a “textura”, conceitos que possuem para nós um interesse particular, já que se trata de componentes que podem ser observados, com constância, nos textos literários. Para finalizar, analisaremos trechos de poemas e comentaremos sobre os aspectos da participação dos componentes da música na estruturação destes textos. Há ainda algo a ser ressaltado: muitos são os termos que foram transplantados da música para a literatura e vice-versa. Nossa intenção aqui não é a de discutir a origem deles, mas como eles funcionam na música e no texto literário.
II- ELEMENTOS DA MÚSICA
Os estudiosos da música costumam dividi-la em três elementos: melodia, harmonia e ritmo. A melodia pode ser compreendida como uma disposição sucessiva de sons. Trata-se da dimensão horizontal da música. Afirmar que a melodia é uma sucessão de sons, entretanto, não é suficiente para compreendermos os efeitos de sentidos gerados por esta. Para que uma melodia seja compreendida é necessário organização, equilíbrio, ordenação, coerência e forma. A melodia corresponde, no caso da música vocal, a parte da peça musical que é cantada. A melodia é considerada o elemento inteligível da música, pois empreende no discurso musical uma narrativa.
Harmonia é a dimensão vertical da música. Trata-se de sons executados simultaneamente. O estudo de harmonia musical está centrado na estruturação dos acordes e na relação entre estes. Acorde é uma união de notas diferente tocadas de forma simultânea ou arpejada. Através da harmonização de uma música é que percebemos a expressão de variados estados de espírito: tensão, repouso, euforia, melancolia, alegria, tristeza. É tanto que na Idade Média se desenvolveu a “Teoria dos afetos”. De uma maneira geral, esta teoria pressupõe que, para cada conjunto de notas (poderíamos também dizer para cada acorde) tem-se um estado de anima diferente.
O ritmo refere-se à organização do som no tempo. É como se organiza o som e o silêncio na música. Como são infinitas as possibilidades de organizar o som no tempo, são diversos os tipos de ritmos: frevo, polca, maxixe, baião, valsa, mazurca, gavotta, samba, dentre outros criados dentro do universo da própria composição. É sabido que a caracterização de um estilo depende não só do ritmo stricto sensu, mas também de fatores histórico-sociais, etnomusicológicos. Por exemplo: convencionou-se denominar de “choro” um conjunto instrumental de música popular brasileira urbana. A instrumentação desse grupo é composta, geralmente, de flauta, cavaquinho, bandolim e violão de sete cordas e pandeiro; os arranjos são compostos de um instrumento solista acompanhado por outros instrumentos que constantemente floreiam; as melodias são, em geral, de durações curtas. Assim, mesmo quando se toca uma valsa ou baião dentro deste universo composicional, pode-se designar esta música como sendo “choro”.
III- RELAÇÃO TEXTO E MÚSICA
Embora sabendo que o modus operande da música e da linguagem verbal sejam distintos, podemos arriscar uma aproximação entre os dois sistemas de signos. Este tem sido o caminho percorrido pela semiótica musical: considerar a música como um texto. E se a música pode ser concebida como um texto, podemos assim dizer que esta possui elementos compatíveis com os da linguagem verbal. Uma cadeia de sons desconexos não forma uma melodia, fato que nos leva a afirmar que uma melodia transmite um sentido. Se a música não transmitisse nenhum sentido, não haveria diferença entre uma série de notas desconexas (tocadas por uma criança de cinco anos no piano, por exemplo) e uma canção.
Música e palavra, ao que nos parece, já nasceram em simbiose. Lembremos da figura trovador da Idade Média. O trovador era ao mesmo tempo poeta e compositor musical. Daí a adoção de uma terminologia, mais tarde, que possui termos em comum para as duas expressões artísticas: frase, período, cadência, timbre, ritmo, tema, leitmotiv, dentre outros. Embora música e literatura tenham se especializado em séculos posteriores, estas expressões continuaram exercendo influências mútuas. No Renascimento, por exemplo, era imprescindível se estudar retórica clássica para compor peças musicais convincentes. Os instrumentos, como se sabe, surgiram como uma forma de imitar a voz humana. Desta forma, pode-se afirmar que até mesmo a música instrumental possui uma narrativa que pode ser equiparada com a linguagem verbal. Seria uma espécie de “falar” através dos sons dos instrumentos.
Os elementos da música - anteriormente estudados - podem ser observados também em um texto literário, de forma mais patente nos textos poéticos. A melodia no poema não se trata de sucessão de notas como na música, mas se trata das inflexões que perfaz cada frase do texto. Assim, pode-se falar em curva melódica do poema. A maneira como o poeta maneja as construções frasais com suas curvas, possibilita que este empreenda vários sentidos em seu texto. Há um campo da música – chamado de Prosódia Musical - que estuda essa articulação que há entre o texto e a escrita da melodia.
A harmonia pode ser observada na trama das várias vozes que geralmente o poema comporta. Michel Dufrene nos mostrara, em “O Poético”, que na poesia a idéia de harmonia não corresponde exatamente com a idéia de harmonia da música, uma vez que o poema não possui uma linha vertical de sons (Mostraremos adiante que alguns poetas conseguiram aproximar a sonoridade de seus poemas a um efeito de verticalidade). Em linhas gerais, a harmonia pode ser compreendida como o aspecto eufônico, ressonante, do poema. Como se organiza os discursos dentro do poema, como se conjugam os assuntos tratados, como a cadeia de sons se correlaciona com o sentido do texto. Tudo isso pode nos remeter à harmonia.
O ritmo – decerto o elemento mais perceptível desta relação – se organiza de forma muito parecida na arte dos sons e na arte da palavra. Na música, o ritmo está relacionado com organização sucessiva de sons e pausas, enquanto que no poema o ritmo se relaciona com a sucessão de acentos das palavras e com as pontuações. Em análise mais aprofundada, o ritmo - como mostra Otávio Paz - expressa uma visão de mundo do escritor. Não se trata apenas de uma opção o fato de um poeta escolher escrever em redondilha e não em alexandrino, ou escrever numa acentuação binária e não ternária. Existe por traz desta escolha um modo de ver as coisas, uma idiossincrasia.
Em termos genéricos, podemos perceber que a música de tradição européia possui um ritmo que é demarcado por trechos de durações regulares, os quais são nomeados de compassos. Na música brasileira – formada pelo embate de uma noção circular (ameríndio e negro) e de uma noção linear de tempo (europeu) – a idéia de divisão de compassos é flexibilizada, embora presente na escrita musical. Daí não possuir na música brasileira – pelo menos na maioria das produções – um “compasso mecânico”. A pesquisadora Martha Tupinambá denominou este fenômeno de “métrica derramada”. Segundo ela, a noção de compasso na música brasileira não é rígida como na musica erudita européia. Em nossa música a métrica é derramada (não uniformizada). Observemos, por exemplo, as interpretações de João Gilberto. Nelas a noção de ritmo uniforme é quebrada, pois a música parece se voltar para as inflexões da fala e não para duração exata do tempo musical. O ritmo, com as interpretações de João Gilberto, adquire uma dicção brasileira.
O estudioso Luiz Tatit - em sua tese Semiótica da canção: melodia e letra - realizou um amplo estudo sobre a canção popular brasileira. Ele percebeu que as nossas canções possuíam, em geral, melodias com pequenos saltos intervalares (notas próximas uma das outras) e andamento (velocidade da execução) acelerado. Segundo o autor, que denominou este tipo de canção de tematizada, o modelo de construção destas músicas está ligado com sentimentos de satisfação com a vida no plano do conteúdo das letras. Canções como “O que é que a baiana tem?”, de Dorival Caymmi, e “Aquarela do Brasil”, de Ary Barroso, estariam enquadradas nesta tipologia. O interessante deste método de análise, ao nosso entender, é o estudo da melodia e da letra como sendo elementos (inseparáveis) de um mesmo discurso. Desta forma, música e texto não podem ser estudados separadamente, pois é a partir da conjugação destes dois planos (melos e logos) que se gera sentido.
IV - CONTRAPONTO
Contraponto significa, em sentido literal, nota contra nota. O contraponto se trata de uma técnica de composição na qual o músico constrói melodias andando em ritmos diferentes. O efeito de sentido que se produz é o de diferentes vozes “conversando”. O contraponto possui ao mesmo tempo uma dimensão horizontal e vertical. Esta técnica foi amplamente aplicada na música Barroca. Aliás, esta é uma das características marcantes do período barroco: a polifonia - vozes que dialogam umas com as outras. Existem formas musicais, como a fuga, que são essencialmente construídas através da técnica do contraponto.
É possível aproximar esse conceito da literatura. Um texto pode possuir variadas vozes entrecruzadas - diferentes falas e percepções de personagens, por exemplo - formando uma espécie de textura polifônica. Daí surgirem importantes estudos, como o de Mikhail Bakhtine, que observou o aspecto polifônico da obra de Dostoievski, e o de Luiz Piva, que analisou (dentre outros elementos) as várias vozes melódicas dos romances do escritor português Vergílio Ferreira. Para concluirmos, deve ser ressaltado o fato de que o contraponto não se trata meramente da disposição de muitas vozes, mas sim de vozes independentes e simultâneas.
V - TEXTURA
O termo textura é aplicado com mais freqüência nas artes plásticas. Porém se tornou recorrente a aplicação deste termo na análise musical. Nos estudos de música, textura significa como estão organizadas as linhas melódicas que estruturam uma peça musical. Quando esta organização é feita com a utilização de variadas vozes em contraponto, chamamos de textura polifônica. Por outro lado, se tivermos uma linha melódica se destacando e outras linhas apenas servindo de acompanhamento, chamamos de textura monofônica (somente um aspecto sonoro). Geralmente os teóricos comparam a textura musical com a textura de um tecido, para que compreendamos melhor esse conceito. A forma como estão dispostos os fios que compõe um tecido corresponde com a forma como estão dispostas as linhas melódicas de uma peça musical.
VI - PROPRIEDADES FÍSICAS DO SOM
O som é um fenômeno produzido pela vibração dos corpos elásticos. Em teoria musical é de grande importância o estudo das propriedades (ou parâmetros) físicas do som. Numa análise mais aprofundada de acústica musical perceberíamos que o som possui várias propriedades físicas. Entretanto, consagrou-se nos estudos de música a catalogação de quatro destas propriedades: altura, timbre, duração e intensidade.
A altura está relacionada com a freqüência do som. Trata-se da velocidade de vibração dos sons. Quando consideramos uma nota mais aguda do que outra, estamos nos referindo à altura desta nota – sendo que os agudos são sons mais altos e os graves são sons mais baixos. É importante colocar que a sensação que temos de agudo/ grave é relativa, depende da comparação entre notas.
Duração é o tempo de permanência de um som. A duração faz com que diferenciemos sons longos de sons breves. Este parâmetro é que levou os gregos a dividirem as sílabas em longas e breves e não em fracas e fortes, já que estes últimos obedecem ao parâmetro da intensidade.
A intensidade, por sua vez, trata-se da força com que um som é produzido. Assim diferenciamos sons fortes de sons fracos. Este parâmetro se relaciona com a dinâmica da música, pois esta arte necessita de contrastes para que não se torne monótona (a não ser que esta seja, de fato, a intenção do compositor).
O timbre é a fonte sonora (de onde o som provém). Costuma-se dizer que esta propriedade é a “identidade” do som, ou a “cor” do som. Através do timbre é que diferenciamos o som de um violão de um som de um violino, por exemplo. Reconhecemos também através do timbre a voz de diferentes pessoas. No texto poético percebemos que este parâmetro contribui muito para engendrar sentidos, simbolismos, sugerir sons de objetos. Lembremos das principais figuras de linguagem que estão relacionadas com o timbre: onomatopéia, aliteração, assonância. Sabemos que se trata de figuras recorrentes na composição de um poema.
Os estudos musicológicos nos mostram que a música – as compostas até o período romântico – privilegiou melodia (que se relaciona com a altura) e ritmo (que se relaciona com a duração). Na música moderna é que se pode perceber um trabalho mais detalhado com o timbre e a intensidade, e também com propriedades como a estereofonia. Embora possamos citar experiências interessantes ainda no Romantismo. O famoso Bolero de Ravel, compositor francês, trata-se de um minucioso trabalho com a textura e a intensidade. Nesta obra, uma simples melodia - intensidade fraca - vai passando gradativamente de instrumento (timbre) para instrumento até atingir a textura de toda a orquestra – intensidade fortíssima. O fato é que a partir do Romantismo os compositores passaram a utilizar o timbre e a intensidade com mais cuidado, tratando-os como elementos essenciais da arquitetura da composição.
VII - UMA BREVE ANÁLISE DE TEXTOS
É oportuno que façamos uma breve análise de trechos de poemas para observarmos como se processa a música na literatura. Acreditamos que alguns poemas possuem uma construção que se volta especificamente para uma propriedade do som ou para um elemento musical. Estamos conscientes, porém, que no todo do poema (e da música) estes elementos se mesclam. Desta maneira, passemos para análise de poemas que são estruturados a partir de componentes presentes na música.
CADEIRA DE BALANÇO -Mário Quintana
Quando elas acordam
Do sono se espantam
Das gotas de orvalho
Nas orlas da saias
Dos fios de relva
Nos negros sapatos
Quando elas acordam
Na sala de sempre
Na velha cadeira
Em que a morte as embala...
Do sono se espantam
Das gotas de orvalho
Nas orlas da saias
Dos fios de relva
Nos negros sapatos
Quando elas acordam
Na sala de sempre
Na velha cadeira
Em que a morte as embala...
(trecho)
Este poema nos leva diretamente a participar do seu ritmo. Cada verso possui uma acentuação binária. E além da existência destes dois pontos de apoio (sílaba forte), todos os versos terminam com palavra paroxítona, o que dar unidade ao ritmo fônico do poema. Notemos que eles sempre começam no impulso (sílaba fraca) – recurso que, na terminologia musical, denominamos de anacruse.
Este poema nos leva diretamente a participar do seu ritmo. Cada verso possui uma acentuação binária. E além da existência destes dois pontos de apoio (sílaba forte), todos os versos terminam com palavra paroxítona, o que dar unidade ao ritmo fônico do poema. Notemos que eles sempre começam no impulso (sílaba fraca) – recurso que, na terminologia musical, denominamos de anacruse.
Quan-do e–las-a–cor-dam (alteração da prosódia de “Quan- do”)
Do – so-no,-se es-pan-tam
Não é tarefa difícil perceber que este ritmo se trata do próprio ritmo de uma cadeira que se balança – método coerente com o título do poema. Assim, o elemento primordial da construção deste poema é o ritmo, pois é ele que dá sentido ao texto. No último verso desta estrofe percebemos uma pequena variação desse elemento:
Em-que a-mor-te as –em-ba-lam...
Embora a acentuação continue binária, e sugerindo uma velhinha se balançando, o verso provoca um certo retardo (em música chamamos de ritardando). Recurso reforçado pela presença das reticências. Ora: trata-se exatamente de uma pessoa que se balança e pára, depois volta a se balançar. E sabemos que esta leitura só possível por causa da estruturação do ritmo, que é a organização do som e do silêncio. Observemos também que a pausa do poema é muito significativa e se relaciona com o conteúdo: trata-se da presença da morte, que interrompe o fluxo da vida.
BERIMBAU – Manuel Bandeira
Os aguapés dos aguaçais
Nos igapós dos Japurás
Bolem, bolem, bolem.
Chama o saci: - Si, si, si, si
- Ui, ui, ui, ui, ui! uiva a iara
Nos aguaçais dos igapós
Dos Japurás e dos Purus.
(trecho)
O aspecto timbrístico deste poema nos chama a atenção. É evidente que há uma série de outros elementos envolvidos na construção de “Berimbau”: o ritmo sugerindo a dança da capoeira, as variações na construção melódica (aguapés/ aguaçais; igapós / iguapés; Japurás/ Purus) sugerindo a textura monofônica do instrumento berimbau. Porém, analisemos o timbre. Este, como vimos, é a propriedade pela qual identificamos um som. E de fato Manuel Bandeira, nos faz “quase” ouvir o som metálico e repetitivo de um berimbau. Observemos a cadeia fônica produzida por repetições de consoantes bilabiais e de vogais nasais e abertas.
agua-PÉ / iga-PÓ/ Ja- PU-rás/ BO-lem.
A reiteração do verbo “bulir” explicita mais ainda os ataques na corda do instrumento:
Bo-LEM, bo-LEM, bo-LEM
Realmente o berimbau, instrumento-símbolo da capoeira, é tocado através da alternância da vibração da corda solta com o abafado da corda presa (realizado geralmente por uma pedra arredondada segurada pelo executante), o que imprime o efeito percussivo. Em outros termos: o toque deste instrumento é produzido pela alternância de sons abertos e sons fechados. No poema este efeito acústico é produzido pela alternância entre vogais de timbre aberto (é, ó, á) e vogais de timbre fechado (~e, ã). Observemos também que o poeta retira fonemas de palavras do próprio texto para produzir efeitos sonoros:
Sa- CI _ Si si si si!
Ui ui ui ui ui _ UI - va a iara
Assim, concluímos que a pesquisa central deste texto – no que se refere aos aspectos musicais - é a utilização de timbres para gerar ruídos específicos, e produzir, dessa maneira, as características sonoras de um objeto.
CIDADEZINHA QUALQUER – Carlos Drumonnd de Andrade
Casas entre bananeiras
Mulheres entre laranjeiras
Pomar amor cantar
Um homem vai devagar.
Um cachorro vai devagar.
Um burro vai devagar.
Devagar... as janelas olham.
Eta vida besta, meu Deus.
Inúmeros são os componentes musicais que podemos perceber na construção desse pequeno poema. Enfocaremos as modificações da curva melódica. Observemos a construção melódica nas duas primeiras estrofes:
Ca-sas en-tre ba-na-nei-ras
Mu-lhe-res en-tre la-ran-jei-ras
Po-mar a-mor can-tar
Cada um destes versos possui três pontos de apoio e são construídos com a repetição excessiva de fonemas nasais mesclado com rimas internas.
Po-MAR a-MOR can-TAR
Na estrofe seguinte encontraremos uma construção parecida:
Um ho-mem vai de-va-gar.
Um ca-chor-ro vai de-va-gar.
Um bur-ro vai de-va-gar.
Verifiquemos os elementos dessa estrofe: sons nasais, ritmo repetitivo com três pontos de apoio, insistente reaparição de palavras. Estas duas estrofes são responsáveis por engendrar uma melodia circular, de ritmo lento, como se estivéssemos apenas dizendo a mesma coisa. Com efeito, o que Drumonnd nos apresenta neste texto é a vida banal e sem perspectiva de uma “cidadezinha qualquer”. Uma sucessão de imagens e de notas iguais, reforçada pela pobreza lingüística do poema. Na última estrofe é perceptível a mudança na curva melódica:
Devagar... as janelas olham
A mudança do ritmo da melodia provoca certa expectativa, como se o conteúdo do discurso fosse modificar-se. Notemos que o advérbio de modo “devagar” realmente engendra um ralentando (termo musical que designa a diminuição gradativa do andamento de um determinado trecho de uma peça) na melodia. A aparição das reticências contribui sobremaneira para esta mudança na inflexão melódica do texto, o que corresponde a um momento de reflexão do narrador. Na leitura deste poema é impossível que não mudemos o “tom” da voz, para pontuar algo que está por vir. O desfecho dessa cadeia sintagmática está na mudança de inflexão do último verso:
Eta vida besta, meu Deus.
Temos aqui uma frase conclusiva, que, de certo modo, se contrapõe com a melodia lenta e monótona que vinha sendo delineada. Este verso - que é como um desabafo - soa “quebrado” ritmicamente, para expressar os entraves dessa vida “besta”. Vejamos a presença ostensiva de linguodentais, que são responsáveis por impedir o fluxo melódico e instaurar a sensação de impedimento:
Devagar... as janelas olham
A mudança do ritmo da melodia provoca certa expectativa, como se o conteúdo do discurso fosse modificar-se. Notemos que o advérbio de modo “devagar” realmente engendra um ralentando (termo musical que designa a diminuição gradativa do andamento de um determinado trecho de uma peça) na melodia. A aparição das reticências contribui sobremaneira para esta mudança na inflexão melódica do texto, o que corresponde a um momento de reflexão do narrador. Na leitura deste poema é impossível que não mudemos o “tom” da voz, para pontuar algo que está por vir. O desfecho dessa cadeia sintagmática está na mudança de inflexão do último verso:
Eta vida besta, meu Deus.
Temos aqui uma frase conclusiva, que, de certo modo, se contrapõe com a melodia lenta e monótona que vinha sendo delineada. Este verso - que é como um desabafo - soa “quebrado” ritmicamente, para expressar os entraves dessa vida “besta”. Vejamos a presença ostensiva de linguodentais, que são responsáveis por impedir o fluxo melódico e instaurar a sensação de impedimento:
E-Ta vi-Da besTa, meu Deus
Os aspectos estruturais do poema nos dizem muito sobre a realidade social e histórica na qual ele foi produzido. De uma maneira que, como nos mostrara Antônio Cândido, não podemos separar os elementos formais das contingências sócio-históricas. Assim, compreendemos que a construção sonora desse poema procura fixar uma crítica à tradição poética do Arcadismo. E, sabendo que Drumonnd é natural de Minas Gerais, esta afirmação se torna mais patente. O poema se mostra como uma recusa ao bucolismo e ao espírito apolíneo dos árcades mineiros. O som também firma esta crítica: a cadência repetitiva de fonemas nasais que forja um timbre enfadonho, a pobreza de rimas, a mudança brusca das inflexões melódicas, o tom coloquial no último verso (Eta vida besta, meu Deus) nos parece problematizar toda uma tradição traçada pelos poetas neoclássicos do Brasil.
ÂNGELUS – Cruz e Souza
Ah! Lilases de Ângelus harmoniosos,
Neblinas vesperais, crepusculares,
Guslas sementes, bandolins saudosos,
Plangências magoadíssimas dos ares...
Guslas sementes, bandolins saudosos,
Plangências magoadíssimas dos ares...
Serenidades eterais de incensos
De salmos evangélicos, sagrados,
Saltérios, harpas dos azuis imensos,
Névoas de céus espiritualizados.
Ângelus fluidos, de luar dormente,
De salmos evangélicos, sagrados,
Saltérios, harpas dos azuis imensos,
Névoas de céus espiritualizados.
Ângelus fluidos, de luar dormente,
Diafaneidades e melancolias...
Silêncio vago, bíblico, pungente
De todas as profundas liturgias.
Silêncio vago, bíblico, pungente
De todas as profundas liturgias.
(trecho)
Luiz Piva, em “Literatura e Música”, coloca que a dimensão melódica do poema pode ser vista através de recursos como a aliteração e a assonância. Em outros termos: estas figuras de linguagem imprimem no texto um sentido horizontal, já que estamos diante de uma sucessão de sons. Neste poema de Cruz e Souza somos levados a pensar no seu aspecto melódico, devido à grande quantidade de figuras de som – recurso comum no Simbolismo, que almejava empreender uma ligação orgânica entre melos e logos. Porém, em uma análise mais cuidadosa desse poema, perceberemos que ele busca insistentemente atingir uma dimensão vertical de sons, ou seja, um efeito harmônico. Vejamos como se estrutura alguns versos:
Ah! Lilases de Ângelus harmoniosos,
Neblinas vesperais, crepusculares,
Guslas sementes, bandolins saudosos,
Plangências magoadíssimas dos ares...
É possível notarmos que há uma camada porosa entre um verso e outro. Os versos parecem entrar um no outro. Este efeito se coaduna com a idéia de harmonia, tanto no sentido musical quanto espiritual. Essencial para a construção desse aspecto harmônico é a maneira como estão dispostas as palavras:
Neblinas vesperais, crepusculares,
Guslas sementes, bandolins saudosos,
Não encontramos neste texto um percurso narrativo linear (um desenho melódico claro), mas sim uma sobreposição de palavras que ressoa uma na outra.
Neblinas vesperais,
crepusculares,
Guslas sementes,
bandolins saudosos
Serenidades eterais
incensos
salmos evangélicos,
sagrados,
Saltérios,
harpas dos azuis imensos,
Névoas de céus espiritualizados.
Ângelus fluidos,
luar dormente,
Diafaneidades e melancolias...
Silêncio vago,
bíblico,
pungente,
profundas liturgias.
A cadeia sonora formada por verbos e substantivos está estruturada como se cada significante formasse um acorde musical (união de notas sobrepostas). Embora sabendo que o texto engendra um sentido, somos levados a crer que o aspecto central desse poema é a harmonização das palavras, isto é, o poeta parece não estar preocupado com o encadeamento lógico das idéias, mas sim com uma polifonia de sons e “imagens”. Como se sabe, esta é umas das constantes estilísticas do Simbolismo. No plano do conteúdo esta idéia de harmonia é reforçada:
Harmoniosos / bandolins / harpas/ fluido.
A noção de verticalidade também é impressa por algumas palavras:
Profundo/ céu/ luar/ crepuscular.
Estamos diante de um texto que, como foi possível observar, admite uma rica leitura do seu aspecto harmônico, conquanto saibamos que o poema não se restringe somente a este tipo de interpretação. Há outros importantes elementos na construção do sentido desse texto (e de outros textos que anteriormente foram estudados) que podem ser analisados em um estudo mais abrangente.
VI – CODA
Alguns estudiosos, a exemplo de Susane Langer, asseveraram que quando a música se liga com a palavra numa canção, a primeira engole a última. Para muitos pesquisadores, efetivamente se trata de uma relação desigual, já que os efeitos de uma arte (música) praticamente anulam os da outra. Para Segismundo Spina “as deslocações prosódicas, a inserção de vogais, os melismas, a estropiação das palavras, a inobservância da propriedade vocabular e da sintaxe, as elipses e as licenças poéticas” servem para demonstrar a superioridade da melodia e do ritmo com relação à letra.
Percorrendo uma trilha diferente, este estudo não pretendeu afirmar a hegemonia de uma arte sobre outra, tampouco demonstrar que a leitura musical do poema seja suficiente para abarcar a complexidade da poesia de um Cruz e Souza, de um Drumonnd ou de um Bandeira. Nosso objetivo aqui foi apenas o de catalogar alguns poemas que nos chamaram a atenção pela forma que usaram um determinado componente musical. A partir desse ponto pudemos, então, compreender de forma mais substancial a riqueza de sons da poesia brasileira e como ela se relaciona com expedientes da música. Estamos conscientes, entretanto, que as relações entre texto e música são complexas e que a análise fônica do poema, tomando como base os elementos da estrutura musical, é apenas uma das etapas do processo analítico.
BIBLIOGRAFIA
ANDRADE, Carlos Drumonnd de. Antologia poética. 15ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1982.
BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. 7ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1979.
CÂNDIDO, Antônio. Literatura e sociedade. 6ª ed. São Paulo: Ed. Nacional, 1980.
CARMO Jr, José Roberto do. Melodia e Prosódia: um modelo para a interface música fala com base no estudo comparado do aparelho fonador e dos instrumentos reais e virtuais. São Paulo: FFLCH/ USP, 2007 (tese de doutorado).
CARRASCO, Ney. Sigkhronos: A formação da poética musical do cinema. São Paulo: Via Lettera: Fapesp, 2003.
DUFRENE, Michel. O poético. Porto Alegre: Globo, 1969.
MED, Bohumil. Teoria da música. 4ª ed. Brasília: Musimed, 1996.
OLIVEIRA, Solange Ribeiro. Literatura e Música. São Paulo: Perspectiva, 2002.
PIVA, Luiz. Literatura e Música. Brasília: Musimed, 1990.
PAZ, Octávio. Signos em rotação. São Paulo: Perspectiva, 2005.
SOUZA, Cruz e. Obras completas. 8ª ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1998.
SPINA, Segismundo. Na madrugada das formas poéticas. São Paulo: Ática, 1982.
TATIT, Luiz. A semiótica da canção: melodia e letra. 3ª ed. São Paulo: Editora Escuta, 2007.
incrivel!
ResponderExcluirisso vai me ajudar muito nas composiçoes!
obrigado!