segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

notas de passagem

(Notas sobre o cinema atual)

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Certamente “O Anticristo”, de Lars Von Trier, é uma das obras cinematográficas mais bem realizadas de 2009. Há nessa película um conjunto de símbolos, um misto de desejo e dor, culpa e catarse, que há muito tempo não víamos. É claro que, em alguns momentos (como no prólogo), observamos certo virtuosismo do diretor, que pode parecer, para alguns, exibicionismo desnecessário. Mas para outros, como eu, trata-se de um momento de nos deleitarmos com a força simbólica e poética da câmara e das metáforas construídas. É cinema em estado “puro” (na falta de um termo mais adequado). Alguns condenam esse tipo de arte que busca uma sensação primeira, um impacto, um deslocamento do interlocutor. Há quem chame tudo isso de esteticismo gratuito. Será? Não seria este tal “esteticismo gratuito” a função primeira da arte?

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Fui ao cinema hoje para assistir ao filme “Lula, o filho do Brasil”. Eu pensava que o filme era sobre o Lula, nosso presidente, mas – logos nas primeiras tomadas – percebi que estava vendo um filme (melhor seria dizer um melodrama biográfico mal realizado) sobre um super-herói, sobre um personagem sobrenatural. A diferença é que os filmes de super-heróis geralmente são bem feitos tecnicamente, ainda que repleto de clichês cansativos. O filme do Lula, além de ser mal feito, endossa a visão tacanha e positivista de que uma sociedade democrática é construída, não a partir do coletivo, mas sim através dos grandes líderes que salvam a pátria com seus poderes extra-terrêneos. É um filme que, ainda que seja discutido como uma mera propaganda política em vésperas de eleição, não passa da linha da mediocridade. Tudo gira em torno de se conseguir comover o público com a estória piegas de um nordestino batalhador que conseguiu “subir na vida” por ser persistente. O filme busca despertar emoções fáceis, sentimentos patrióticos – elementos típicos de um cinema feito para um espectador que procura ver-se na tela (“Sou nordestino e trabalhador como Lula, logo posso “crescer na vida também”) sem ter que pensar sobre o que se passa ali. Em suma: trata-se de uma obra composta para quem não vai ao cinema ver cinema.

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“Quem quer ser um milionário” (música composta por A. R. Rahman) ganhou o Oscar de Melhor Música. Ennio Morricone nunca ganhou um Oscar, mas é autor basilar na história da música de cinema. Possivelmente, ao lado de Bernard Herrmann, é um dos trilhistas mais imitados em toda a história do cinema. Quem esquece as irônicas intervenções musicais de seus westerns? Quem não se comove com aquele oboé profundo e sentimental de “A missão”? Quem ver “Cinema Paradiso” e não sai cantarolando pelo menos um de seus temas? Ainda há gente que atesta a qualidade de um artista pelo número de Oscars que ele recebeu...

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“Desejo e Reparação” (2007) possui uma das melhores trilhas sonoras destes últimos anos. Não se sabe – ao ver e ouvir essa película – o que é exatamente som ambiente, música e fala. Todos estes elementos se harmonizam e convertem-se em uma magnífica sinfonia. Os ruídos de uma máquina de escrever viram música percussiva; os ataques dos tímpanos substituem ruídos do ambiente; a música extra-diegética se transforma, sem quebrar a fluência sonora, em música diegética. E não estamos falando de melodias e ritmos complexos. O tema do filme é simples: uma sucessão de poucas notas que são executadas, na maioria das vezes, por piano e cordas. É algo mais que sublime o modo como são articulados os elementos da trilha sonora de “Desejo e Repação”. Dário Marianelli (compositor italiano), além de ter transpirado bastante, estava numa época de enorme inspiração [palavra rara ao falarmos de música de cinema atual]...


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As cenas que mais me chocaram no cinema foram três:

i- O olho vazado em “Um cão andaluz”, de Luís Buñuel

ii- O clitóris decepado em “Anticristo”, de Lars Von Trier

iii- O esfaqueamento de Márion Crane em “Psicose”, de Hitchcock

Não há terror, por demais barato, que consiga atingir tamanha violência aos nossos olhos. De nada vale nos mostrar cabeças decepadas, rios de sangue, pedaços de soldados em guerra. O impacto que a imagem provoca não depende dela em si. Depende da maneira como os elementos do discurso fílmico estão articulados entre si. Quem assiste a um filme como “Rambo IV” já espera ver cenas chocantes, pois é somente isto o que o diretor tem a nos oferecer. De tão gratuitamente chocantes as cenas já não chocam mais. O impacto que sentimos ao ver as três cenas acima citadas se dá, em grande parte, pela mestria que os diretores possuem (cada um à sua maneira) ao conduzir uma ação dramática...


Alfredo Werney

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