A MAÇÃ (IRÃ,1998), DE SAMIRA MAKHMALBAF
Wanderson Lima*
Samira Makhmalbaf dirigiu o filme “A maçã” (Sib, 1998, Irã / França) quando tinha apenas 17 anos, sendo a mais jovem cineasta até hoje a concorrer a prêmio no Festival de Cannes. Dois anos depois, com “O Quadro Negro” (Takhté Siah), ela ganharia o Prêmio Especial do Júri daquele festival francês, tendo o seu nome definitivamente ganho projeção mundial.
“A maçã” narra a história verídica de duas irmãs, Massoumeh e Zahra, trancafiadas em casa pelos pais - uma senhora cega e um senhor desempregado - durante 11 anos, o que as levou a um processo de retardo mental. A prisão domiciliar era justificada por uma passagem de um texto religioso segundo o qual as jovens são como pétalas, que fenecem ao contato do sol. No filme, acompanhamos o drama dos pais (do pai, principalmente) para não ver as filhas ficarem sob a tutela do Estado. Ele tentará ensinar as meninas a desenvolver habilidades essenciais, como varrer o terreiro e fazer comida, para provar a uma assistente social que elas devem ficar com a família. O instigante é que não só a história das irmãs é verídica como os envolvidos no drama representam a si mesmos no filme. O pai, por exemplo, aceitou representar a si mesmo por acreditar que, assim, poderia defender seu nome, que fora, em sua opinião, caluniado pela imprensa, quando o caso veio à tona. É a própria Samira que diz, numa entrevista concedida no Brasil: “Começamos a fazer o filme apenas quatro dias depois que toda a imprensa abriu espaço para a história. Isso significa que o que foi captado, nesse curto período de tempo, era o real, ou as conseqüências sociais e psicológicas do acontecido”.
Esse esfacelamento das fronteiras entre ficção e documentário, que leva ao hibridismo das imagens, ora em um registro bruto, ora com um zelo pictórico incomum, é nítida influência, na jovem cineasta, de Mohsen Makhmalbaf, que é seu pai e assinou o roteiro do filme, e de Abbas Kiarostami. Há um conjunto de filmes feitos no Irã que, valendo-se desse hibridismo, se refestela na reedição do neo-realismo italiano, apresentando histórias filmadas com amadores, denúncia social, mensagens humanistas, preferência pelo plano-seqüência e uma insistência em mostrar, nem sempre por necessidades estéticas, a beleza das paisagens iranianas em planos gerais de tirar o fôlego. É a vertente que nos deu, por exemplo, o Majid Majidi de “A cor do paraíso”, o Bhaman Ghobadi de “Tempos de embebedar cavalos” e o Mohsen Makhmalbaf de “Caminho de Kandahar”. São filmes belos, minimalistas, movidos pela crença implícita de uma transparência simbólica da representação cinematográfica, a decantada idéia do cinema como a arte realista por excelência, como defendia André Bazin. A adesão de Samira a um realismo de imagens híbridas vai além desse realismo, digamos, convencional: passa por uma crítica da auto-evidência da imagem e por um questionamento radical sobre o papel do cinema e os limites entre o ator e a pessoa real. Ou seja, “A maçã” deriva do grande Abbas Kisrostami de “Close-up” (1990) e do Mohsen Makhmalbaf de “Um instante de inocência” (1996).
À primeira vista, “A maçã” pode chocar, porque Samira é avessa a ornamentos e melodrama. Sente-se, durante toda a história, que a diretora, mesmo tratando de uma situação dolorosa e aberrante, não nos quer fazer chorar. A precisão e a lentidão da fotografia convidam à reflexão, à apreciação racional. Samira vale-se do distanciamento, evitando que façamos julgamentos emotivos ou unilaterais. Trata-se de um filme polifônico, no sentido bakhtiniano do termo: ali estão presentes a ótica da família, a da vizinhança e a do Estado, na figura da assistente social. A diretora penetra nos dramas humanos evitando simplificações: não há um culpado, há culpados. Fica sugerido que é a própria estrutura do país - seu modelo de educação, sua moral, seu machismo - que produz as condições que geram casos aberrantes, como o que é analisado no filme.
A primeira cena do filme apresenta bem o estilo da diretora: vemos uma mão que tenta, com dificuldade, regar uma plantinha. Há um impedimento, a mão peleja, mas só uma parte da água cai no vazo. Mais adiante, saberemos que o impedimento fora oriundo de problemas de coordenação motora, já que Massoumeh e Zahra não foram socializadas na idade certa. As irmãs serão como essa tênue planta, e só poderão ser “regadas” quando a mão da coletividade agir. Isto se confirma na cena seguinte, que apresenta os pais das irmãs, significativamente, de costas: deles, talvez, elas não possam esperar serem “regadas”. A seguir, vemos um documento, um abaixo-assinado, em que os vizinhos denunciam a situação de Massoumeh e Zahra às autoridades. A última assinatura é justamente de Samira Makhmalbaf que, assim, assina sua responsabilidade não só na/pela ficção, mas na ação social prática.
Assim como a planta da cena inicial, outros símbolos irrompem, ora mais ora menos explícitos, no decorrer do filme. Diríamos que o simbolismo ostensivo é um único e eficaz oásis na aridez do estilo de Samira. Um desses símbolos, a maçã, dá unidade ao filme e, com justiça, serve de título. A maçã aqui não está associada ao pecado, mas à redenção: é com a maçã (e mais tarde com o espelho) que a assistente social declara seu cuidado com Massoumeh e Zahra; é quando as irmãs vão, sozinhas, ao mercado comprar maçãs que fica provado: elas são sociáveis e capazes; com maçãs elas conquistam e celebram suas primeiras amizades; e como era de se esperar, é a maçã que estabelece o dilema no fim do filme e redime a diretora de subjetivismo tendencioso e frieza no desfecho. A personagem que encara a “maçã-dilema” no final é a mãe de Massoumeh e Zahra. Embora apareça pouco na história, ela é talvez a personagem mais intrigante e mais difícil de ser julgada unilateralmente. Ao mesmo tempo vítima e algoz, através dela a diretora retrata os dilemas da mulher iraniana, cerceada pela violência simbólica da tradição religiosa. Ela é cega e, como se não bastasse, anda sempre com o rosto encoberto. Diríamos que ela é duplamente cega: por uma causa natural e por outra cultural. O trauma que ela causa às meninas não é por maldade, e sim por ignorância. Pensa ela, fundada em preceitos morais e religiosos, estar fazendo o bem.
A sensação geral que o espectador tem dessa mãe no decorrer do filme não poderia deixar de ser de ojeriza, já que, mesmo sem más intenções, ela arruinou a existência das crianças. No entanto, Samira busca mediar, em suas operações formais, um julgamento menos preconceituoso a respeito dessa mulher. Neste sentido, a cena final do filme é exemplar, e merece um comentário.
O pai, depois da lição severa da assistente social, deixando-o trancafiado em casa para ele sentir na pele o desconforto da reclusão, sai com Massoumeh, Zahra e mais duas crianças a fim de comprar relógios para as filhas em um camelô. Ele avisa à esposa da saída, mas esta parece não ter escutado. Começa a chamar pelas filhas e o marido e termina por sair, tateando, de casa. Na rua, sob um pequeno prédio, é vítima da brincadeira de um menino traquinas, que do segundo andar faz uma maçã amarrada a um barbante voltear sobre a anciã cega. A poesia que emana dessa cena ganha força não só pelo simbolismo da maçã, recorrente em todo o filme, mas pelo modo insólito que a fruta aparece. Temos o enquadramento de uma deficiente visual resmungando enquanto em seu derredor “flutua” uma maçã, isto é, uma possibilidade de imersão na vida sem o ascetismo da moral pessimista que impregna a religião de Alá. O fotograma congela e o filme termina no exato momento em que a mãe de Massoumeh e Zahra consegue pegar a maçã.
Terá ela mordido a fruta? Terá ela, assim, imergido numa vida mais livre, mais saborosa? São respostas imprevisíveis e mesmo inúteis à economia formal do filme - e acerta a diretora em deixar este ponto em aberto, obrigando o espectador a co-participar reflexivamente da criação. Mas a lição de ética e de arte que Samira Makhmalbaf nos acaba de ofertar decerto irá reverberar em nossa consciência e nossa sensibilidade.
* Poeta e ensaísta, professor da UESPI (Universidade Estadual do Piauí).
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