segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

palestra sobre "Cipriano"


A construção do sentido de Cipriano, de Douglas Machado

(resumo da palestra apresentada para o CEPP, dia 06/ 12/2008)

Alfredo Werney

1- Introdução

Bom dia a todos. Eu queria, antes de tudo, agradecer o convite do CEPP (Ciclo de estudos de Psicanálise do Piauí) e dizer que fico feliz em ver que a Psicologia e a Psicanálise estão abrindo espaço para outros campos, no caso a Arte, mais especificamente “o cinema”. Acho importante que a Psicologia e a Psicanálise não fiquem somente na clínica, mas se expandam e busquem a compreensão do humano também pelo viés da arte. Eu, que por muito tempo fui estudante de Psicologia e agora estou me formando em Artes, conheço um pouco dos dois lados da moeda. O curso de Psicologia é muito fechado. É um curso que não costuma aceitar leituras de orientação artística. A Psicanálise me parece mais aberta à questão. O próprio Freud ressaltou a importância do conhecimento artístico na formação do psicanalista.

2- Produção

Comecemos a discussão sobre “Cipriano” falando um pouco da sua produção. “Cipriano” foi produzido pela “Trinca Filmes”, e dirigido por Douglas Machado. As primeiras cenas foram gravadas no norte piauiense: Piri-Piri, Parnaíba, litoral piauiense. O orçamento do filme foi muito baixo. Douglas teve poucos apoios, o mais importante talvez tenha sido da lei A. Tito Filho, vinculada à Prefeitura de Teresina. A equipe de produção do filme foi formada por brasileiros e suecos. A pós-produção (montagem e trilha sonora) foi realizada na Suécia. Trata-se do primeiro longa-metragem produzido no Piauí, com direção piauiense. Antes, tivemos filmes como “O Guru Das Sete Cidades”, mas não se trata ainda de uma produção piauiense, com recursos e direção de pessoas ligadas a nosso estado.

“Cipriano”, foi possível percebermos, não se trata de um filme agradável e indicado para assistirmos com a família em casa, comendo pipoca. Esse fator incomodou muita gente que esperava, com euforia, pelo primeiro filme piauiense. Muitos queriam se ver na tela, se identificar com as personagens. Mas não foi o que viram na tela do Riverside: não se tratava de mais um daqueles filmes que fala da seca e dos problemas sociais do Nordeste. Na maioria das vezes, de forma pitoresca e ingênua.

O cineasta brasileiro quando se depara com o problema da escassez de recursos, já dizia o nosso grande Glauber Rocha, geralmente ele busca dois caminhos:

i- Fazer um cinema à Hollywood.

ii- Produzir um cinema puramente reivindicatório, sem nenhuma preocupação estética.

Cipriano não se trata nem de panfleto (crítica os problemas sociais do sertanejo) nem de cinema comercial que apela para o pitoresco e para a gramática fílmica hollywoodiana. Dessa maneira, o filme foge dessas armadilhas que acabei de falar. O filme, na verdade, é uma alegoria acerca do universo simbólico do nordestino. A minha análise não se dará pelo caminho da psicanálise, já que a professora Lídia fará essa leitura depois. Além disso, seria arriscado falar de Psicanálise para vocês que são psicanalistas. O que vou observar é como se constrói o sentido do filme a partir de sua estruturação: montagem, trilha sonora, iluminação, personagens, etc.


3- Estruturação do filme

“Cipriano” é estruturado em cinco sonhos: Demônios, Morte, Procissão, Cemitério, Morada das almas. A narrativa é aparentemente simples: Um homem que morrer e ser enterrado em um cemitério próximo ao mar. Seus filhos, Abigail e Vicente, são responsáveis por esta tarefa.


4- O universo barroco em Cipriano

Um aspecto do filme que me marca muito é a sua atmosfera barroca. O trabalho de Douglas possui uma linguagem muito próxima de um universo barroco, se nós compreendermos o barroco como uma constante estilística que está para além do século XVII. Os contrastes de ritmos (tomadas longas/ rápidas), de sons (silêncio/ saturação sonora), de iluminação (claro e escuro) o aspecto polifônico (multiplicidades de vozes: rezadeiras, narração de Vicente, Bigail, sons da trilha) confirmam essa composição do filme.


5- A questão do tempo e do espaço.

Outra questão que me chama a atenção é a construção do tempo e do espaço da obra. O tempo em “Cipriano” não é organizado de maneira cronológica. O tempo de “Cipriano” é mítico, circular: é o tempo do ritual religioso e não o tempo do relógio e da modernidade. É tanto que o filme não faz referência a datas, vocês devem ter percebido. E o espaço do filme? O espaço de “Cipriano” é contrastante: mar/ sertão, casa comprimida/ espaço aberto; além disso, é simbólico: relaciona-se com o universo das personagens. O velho Cipriano vive trancado em sua casa pequena, Vicente prefere espaços amplos e claros, como a praia, os rios. O sertão de Cipriano se aproxima com o de Guimarães Rosa (atemporal, poético, mítico, transcendental) e se distancia do sertão de Graciliano Ramos (temporal, realista, seco, calcado nas problemáticas sociais). É um sertão poético, sem prosaísmos.

6- A geometria de Cipriano

Uma questão interessante que percebi quando assisti “Cipriano” pela segunda vez é que o filme é organizado por círculos e espirais: os movimentos de câmera, a dança da morte, as construções musicais, a narrativa, etc. Essa estruturação está concatenada com a idéia de um tempo mítico do qual falei anteriormente.


7- Montagem

A montagem de “Cipriano” está relacionada com a idéia de movimento circular do filme. A montagem possui contrastes de ritmo (ora planos lentos/ ora planos rápidos). O tipo de montagem recorrente no filme é a montagem polifônica: aquela que possui várias imagens que se sucedem em diferentes ritmos. Trata-se de imagens que circulam e apresentam um leitmotiv. O leitmotiv é uma espécie de refrão musical. Eisenstein denominou esse princípio de montagem de harmônico-visual. No terceiro sonho, podemos perceber nitidamente esse tipo de montagem que eu comentei.


8- Personagens

Vou falar agora sobre os personagens, que são muito interessantes. Os personagens de “Cipriano” certamente serão mais bem compreendidos pelo viés da psicanálise do que pelo viés da sociologia, pois o universo de Cipriano não é explicado pela questão política e social, mas pelos distúrbios de realidade das personagens e pelas forças da natureza e dos sonhos.

Vicente tem a visão defeituosa e vê as coisas de maneira desfigurada. Sua mãe morreu, supostamente, do seu parto. Vicente, assim, guarda um rancor edipiano pela figura paterna. Ele busca o impulso da vida e em algumas cenas recompõe o ritual do batismo.

Cipriano é uma nítida referência ao santo canonizado no século XIX pela Igreja Católica. Ele representa a dilaceração do homem que vive entre as forças do bem e do mal. Há todo um misticismo em volta da vida de São Cipriano, que estudou o orientalismo e supostamente escreveu sobre magia negra.

Abigail simboliza o ponto de equilíbrio entre o pai e o irmão. Pesquisando o Antigo testamento, li que Abigail era uma mulher disputada por Nabal e Davi. Quando Nabal morreu, seu marido, Abigail se casou com o rei Davi. Ela foi responsável por evitar uma tragédia entre os dois personagens. Não sei se os nomes foram criados intencionalmente por Douglas Machado. Aliás, isso não me interessa tanto. Afinal, a obra de Arte é aberta: o autor não é o dono do sentido.


9- Trilha sonora.

A trilha sonora é a parte do cinema que engloba: música, sons do ambiente, diálogos. A música de “Cipriano” foi produzida a partir de sons sintetizados. O som sintetizado é som produzido por meios eletrônicos. A música de “Cipriano”, em geral procura dialogar com os movimentos de câmera, com a montagem e com outros componentes da linguagem fílmica. Em geral, a música é construída com uso ostensivo de ostinatos. Os ostinatos, na linguagem da música, são repetições frasais que geram tensão por serem muito repetitivas. Basta que nos lembremos dos sons das rezadeiras: sempre estão se repetindo durante cada sonho.

A música desse filme, não se trata de uma música pitoresca que procura mostrar a sonoridade típica do sertão – aquela coisa de zabumbas, sanfona, violas e pífanos de Caruaru. Esse tipo de música é muito comum, atualmente, no cinema produzido no Nordeste. Exemplo: “Lisbela e o prisioneiro”, “Auto da Compadecida”, e por aí vai. É um tipo de trilha sonora centrada em clichês que não geram reflexão, apenas confortam nossos ouvidos. E ainda mais: se direcionam para o mercado de canções populares. Ou seja: se o público assimilar as canções, a venda de discos é farta.


10- Câmera e Iluminação

Dois componentes importantes na construção de sentido de “Cipriano’ é a câmera e a iluminação. A câmera em “Cipriano” oscila entre momentos de extrema poesia e momentos de pura documentação. As rezadeiras, por exemplo, são filmadas com um caráter documental. Os movimentos de câmeras participam da idéia de um tempo circular que sempre estamos comentando; vários são os movimentos em círculo que a câmera assume quando fotografa o velho Cipriano. A iluminação do filme oscila entre intenso claro e intenso escuro: Luz e Treva. A iluminação simboliza o universo dilacerado de Cipriano: O Bem e o Mal.


11Considerações finais

Para finalizar essa nossa discussão, quero colocar que “Cipriano” é uma grande obra e demonstra que o Piauí já iniciou adulto no mundo do cinema. O filme, quando foi lançado, foi muito criticado por jornalistas desinformados e pelo público acostumado somente com os lugares-comuns do cinema comercial do Nordeste. A questão é que Douglas não quis fazer um filme para homenagear o Piauí. E foi aí que, a meu ver, ele acertou. O cinema é uma linguagem artística e não um simples meio de transmitir mensagens político-ideológicas. Para isso, já existem inúmeros programas de televisão. Aliás, acho que até mesmo os programas de TV deveriam possuir uma linguagem mais humanizada e mais poética. Por que não assistir um jornal como um meio informativo e ao mesmo tempo como um objeto de prazer estético? As duas dimensões não se anulam.

Voltando para a análise de “Cipriano”, podemos colocar que toda essa nossa discussão sobre os elementos formais da película nos leva a afirmar que se trata de um filme em que a visão de mundo está estritamente ligada aos procedimentos estruturais. Uma visão de mundo cíclica e tensa, que se organiza da mesma maneira dos nossos sonhos. “Cipriano” possui uma estruturação parecida com a estruturação dos nossos pensamentos. Nossos pensamentos não são lineares, eles se misturam e se apresentam como raízes de uma árvore. Esse vai-e-vem da narrativa se relaciona também com o universo da loucura de Vicente e Cipriano. Em fim, “Cipriano” possui uma estrutura e uma visão de mundo que estão intimamente conectadas.

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