sexta-feira, 13 de maio de 2011

Entrevista com Ismail Xavier


Ismail Xavier formou-se em cinema pela ECA (Escola de Comunicações e Artes da USP) em 1970. Fez mestrado em Teoria Literária na USP, sob orientação de Paulo Emílio Salles Gomes e doutorado em 1980, sob a tutela de Antonio Candido. Seu pós-doutorado veio em 1986, na Graduate School of Arts and Science, da New York University. É professor da ECA-USP desde 1971, tendo lecionado também em universidades estrangeiras, entre elas a Universidade de Nova Iorque (1995), a Universidade de Iowa (1998) e a Université Paris III - Sorbonne Nouvelle (1999). Dentre suas obras, podemos destacar: “Discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência” (1977), “Sertão Mar: Glauber Rocha e a estética da fome” (1983), “A experiência do cinema” (org., 1983) e “Allegories of underdevelopment: aesthetics and politics in brazilian modern cinema” (1997). A presente entrevista nasceu após um contato de um dos entrevistadores (Alfredo Werney) com Ismail em São Paulo. Acertou-se a base da entrevista e as perguntas foram enviadas por e-mail. As respostas de Ismail Xavier denotam sua generosidade intelectual, bem como uma capacidade ímpar de articular o conhecimento das operações estéticas do cinema com os contextos de produção dos filmes.



ALFRED HITCHCOCK

Alfredo Werney / Wanderson Lima - Professor Ismail Xavier, comecemos a entrevista tratando de um assunto polêmico: a questão da autoria no cinema. Quando observamos, por exemplo, uma seqüência como a do assassinato de Marion Crane em “Psicose” (Alfred Hitchcock, 1960), a trilha sonora nos leva a sentir toda a brutalidade do crime através das fortíssimas e agudas notas dos violinos em sincronia com as punhaladas. Em grande parte, o sucesso da seqüência se deve ao músico Bernard Herrmann, que – se contrapondo a Hitchcock – decidiu musicar o momento mais violento do filme. Até que ponto o diretor é o autor de uma obra cinematográfica?

Ismail Xavier - Vocês, na pergunta, sugerem, e com razão: a rigor, o diretor não é autor pleno de um filme, dado que é obra de colaboração. Por outro lado, ao longo da carreira de um cineasta, a crítica tem encontrado marcas que se reiteram - um estilo, um talento, uma temática - e vão construindo um núcleo que permite atribuir a ele grande parte da criação e dos efeitos de sentido produzidos. O que tem convencionalmente gerado a atribuição de autoria, por um jogo político de valorização dos diretores e por uma questão de economia: ter um nome por trás do título facilita o trabalho da crítica, e é mais “justo” que este nome seja o do diretor, pelo seu papel decisivo, do que o do produtor (com exceções) ou o do roteirista (aí há polêmica, como sabemos), ou mesmo o do fotógrafo. De qualquer modo, as responsabilidades diferem conforme o tipo de produção, podendo ser maior ou menor, dentro de uma ponderação sempre complicada: há autores que o são porque concentram tudo em suas mãos, e há os que o são porque conseguem deixar forte marca mesmo em situações de produção industrial. Para voltar ao exemplo de vocês, é claro que muito do mérito da seqüência (assim com o de muitas outras) pode ser atribuído ao compositor. Mas resta ainda ao cineasta a prerrogativa de ter sabido escolher o colaborador ideal e ter sabido criar a situação para que este mostre as suas qualidades. Cabe ao diretor conseguir o melhor resultado dos atores, do fotógrafo, do montador, do compositor da trilha, do editor de som; cada um deles é um co-autor. Mas se quisermos a figura do “maestro da orquestra” o candidato mais forte é o diretor.


AW/WL - Nas primeiras linhas de sua introdução à edição brasileira das entrevistas “Hitchcock/ Truffaut”, o sr. versa sobre o já citado assassinato de Marion Crane.Nesta seqüência, observamos que a montagem deixa de ser tão-somente um processo de encadeamento dos elementos da diegese, para desempenhar um papel central, de grande expressividade. A violência das punhaladas no corpo da personagem como o senhor bem ressalta na sua introdução nos é transmitida pela articulação rápida e recortada dos planos. A montagem parece se transformar na própria “coisa” representada.O senhor poderia falar mais sobre este tipo de montagem?

IX - A força das imagens está na sua capacidade de sugestão, não no que efetivamente dão a ver de modo explícito. Numa seqüência montada, a força das relações criadas entre as imagens, bem como a síntese obtida no conjunto, definem o efeito e o sentido da representação. O essencial é a capacidade de criar um fato que nunca está, explicitamente, na tela. O fato se cria, não se mostra. Este é o princípio de um cinema de montagem, embora haja também um cinema que vá em outras direções. Hitchcock, a seu modo, é um cineasta da sugestão pela montagem, assim como Eisenstein é o cineasta da construção gráfica de um discurso visual, pela montagem.


AW/WL - Em 2005, o sr. gravou dois DVDs para os “Grandes Cursos Cultura na TV”. Trata-se de cinco palestras em que o sr. discute o cinema de Alfred Hitchcock. Sabe-se que muitos intelectuais norte-americanos consideraram o diretor londrino um cineasta tecnicista, um realizador de truques cinematográficos e de obras superficiais. Os críticos franceses do “Cahiers Du Cinema” reclamaram do preconceito contra o diretor de “Vertigo”. Francisco de Almeida Salles, endossando a opinião dos franceses, afirmou sobre Hitchcock: “A sua obsessão não é o efeito formal, o ritmo, a mecânica do filme, mas é o homem (...)”. Qual a sua opinião sobre esta polêmica?

IX - Concordo com Almeida Salles e os franceses, e acredito que hoje é muito raro alguém recusar a Hitchcock a condição de um dos maiores autores da história do cinema. Ele reúne uma reflexão sobre nossas disposições psicológicas mais fundas (que estão no centro do jogo visual e sonoro que ele arma) com uma reflexão sobre o próprio cinema e a ficção enquanto lugares de verdade, não no sentido de contar histórias reais, mas no sentido de mobilizar as paixões mais intensas, fazendo de seus filmes uma anatomia de certas obsessões que trata de forma tão iluminadora quanto a melhor literatura. É de uma coerência estilística exemplar, mas é preciso captar a sua ironia.


MÚSICA E CINEMA

AW/WL - Na história do cinema, como se sabe, fomos brindados com parcerias inesquecíveis de cineastas com músicos: Eisenstein/ Prokofiev, Hitchcock/ Bernard Herrmann, Sérgio Leone/ Ennio Morricone, Kieslowski/ Preisner, e, mais atualmente, Spielberg/John Willians, Iñárritu/ Santaolalla para citar algumas das parcerias mais significativas.Como o senhor compreende o papel da música na construção do discurso cinematográfico?O sr. acredita que a música pode ser decisiva na construção de sentido de uma cena?

IX - A música será sempre decisiva na construção de sentido de uma cena, desde que esteja inserida num cinema que pensa os vários canais de expressão da forma mais lúcida possível. Nem sempre isto acontece, ora porque se pensa o som como algo adicional que vem depois da imagem e não é tão importante (postura redutora), ora porque não se consegue o bom diálogo entre diretor e músico, razão pela qual, assim como acontece com a fotografia, e mesmo a montagem, os bons diretores preferem parcerias que possam favorecer a convergência das criações. Quando tudo se conjuga bem, criam-se as parcerias inesquecíveis.


CINEMA DE RETOMADA

AW/WL - Professor Ismail, se nos propuséssemos a fazer uma lista dos mais importantes filmes brasileiros de ficção da atualidade, quais não poderiam faltar?

IX - Vou considerar atualidade o período 1995-2008, a da chamada retomada. E vou, com certeza, compor um elenco insuficiente que exigiria acréscimos. É o risco de sempre. Terra estrangeira (Walter Salles), Assim nascem os anjos (Murilo Salles), Um céu de estrelas (Tata Amaral), O invasor (Beto Brant), Baile perfumado(Caldas e Ferreira), Estorvo (Ruy Guerra),Lavoura arcaica (Luiz Fernando Carvalho),Miramar, São Jerônimo e Filme de amor (Júlio Bressane), A ostra e o vento (Walter Lima Jr),Amores (Domingos de Oliveira), Dois córregos(Carlos Reichenbach), Amélia (Ana Carolina),Cronicamente inviável (Sérgio Bianchi), Bicho de sete cabeças (Laís Bodansky), Cidade de Deus(Fernando Meirelles), Amarelo manga (Cláudio Assis), Desmundo (Alain Fresnot), Contra todos(Roberto Moreira), Cinema, aspirina e urubus(Sérgio Gomes), O céu de Sueli (Karim Aïnouz),Corpo (Rubens Rewald & Rossana Foglia), Canção de Baal (Helena Ignez) e um ou outro mais que me escapa no momento.


CINEMA DE ARTE X CINEMA DE INDÚSTRIA

AW/WL - A partir das idéias inovadoras de Walter Benjamin, em “A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica”, muito se discutiu, e ainda se discute, sobre a relação entre Arte e Indústria, Arte e Mercado. Fredric Jameson, em entrevista à Folha, afirmou que está desaparecendo a fronteira entre a produção econômica e a vida cultural. “Cultura é negócio, e produtos são feitos para o mercado”, disse o pensador. Na modernidade, observa Jameson, lutou-se bravamente contra a mercantilização da cultura; a realidade pós-moderna, porém, é inelutável: a cultura tornou-se mercadoria. Nesse contexto, para o senhor, ainda faz sentido a bipartição (como muitos querem) do cinema em “cinema de arte” e “cinema de indústria”?

IX - Esta bipartição teve origem nas polêmicas da vanguarda no início do século XX e não pode ser tomada como um absoluto. Tinham e têm razão os cineastas que apontam as fórmulas gastas e a cautela da indústria em sua ansiedade pela comunicação (que muitas vezes atrapalha a arte que não é propriamente comunicação, mas o ato de problematizar a comunicação, questionar nossos automatismos). Mas têm razão os críticos que recusam esta bipartição como separação entre o bem e o mal, pois o valor pode estar dos dois lados da fronteira. Creio ainda ser útil a utilização destes rótulos como apontadores de tendências, sem atribuição dogmática de valor só porque um cineasta se proclama do lado do cinema de arte, pois pode se dar o contrário. E também tendo consciência de que – a menos de um segmento bastante reduzido de filmes efetivamente experimentais que buscam outros circuitos tudo é mercadoria, e “cinema de arte” é uma estratégia de marketing como outras. A rigor não são categorias estéticas; são armas de polêmica e fórmulas rápidas de situar um produto que não dispensam a análise caso a caso.


ALEGORIAS DO SUBDESENVOLVIMENTO

AL/WL - Fredric Jameson, em “Third World Literature in the Era of Multinational Capitalism”, aponta a alegoria como a forma que define a produção artística do outrora chamado “terceiro mundo”, enquanto o pastiche, réplica pós-moderna da paródia, definiria a produção do “primeiro mundo”. Em que ponto(s) sua concepção de alegoria é convergente com a de Jameson e em que ponto(s) apresenta diferenças?

IX - Em meu livro “Allegories of underdevelopment”, publicado nos Estados Unidos, comentei a diferença entre a minha posição e a de Jameson. No “Alegorias”, analiso a relação entre os filmes brasileiros dos anos 60 e distintas formas de se entender a alegoria, seja com referência aos gêneros clássicos, seja com referência ao evangelho, à alegoria barroca (esta, sim, a partir de Benjamin) e à alegoria moderna. A alegoria nacional faz parte do meu percurso e eu a vejo sendo praticada em diferentes países (nos USA, na Europa, na Ásia, na América Latina). Jameson se preocupa com este tipo de alegoria nacional quando a ficção que acompanhamos, ou seja, a experiência das personagens, é referida ao contexto nacional, como representativa de um estado de coisas na sociedade. Ele exagera e diz que nos países do primeiro mundo tal alegoria não mais seria uma prática relevante, sendo, portanto, uma característica da literatura e do cinema do Terceiro Mundo. Minha resposta, e também a de Robert Stam, que escreveu sobre o assunto, foi apontar a presença de alegorias nacionais no cinema e na literatura dos USA e da Europa. Em verdade, a discordância é no uso que ele faz da idéia de alegoria nacional (num sentido bem amplo) no seu diagnóstico da situação atual da ficção.


INTEGRAÇÃO DE LINGUAGENS

AL/AW - Podemos afirmar que, em certo sentido, a qualidade estética de uma obra cinematográfica resulta da integração e do equilíbrio formal de vários elementos: som, luz, cenário, roteiro, atores, dentre outros.Dessa maneira, é coerente se premiar fragmentos de um filme,como “melhor música”, “melhor fotografia”,“melhor roteiro”, etc.? As premiações dos festivais, como o Oscar, realmente atestam a qualidade artística de uma obra?

IX - Tenho problemas com premiações, mas temos de reconhecer que foi uma função da crítica desde os festivais das peças trágicas na Grécia antiga. Com todos os problemas, é uma forma de apontar quem ou qual função contribui mais para a qualidade de um filme. O resultado final depende da integração, mas há aspectos da obra que resultam mais felizes do que outros.


GLAUBER ROCHA

AW/WL - Suas leituras de Glauber Rocha acentuam a dialética, presente no estilo barroco dos filmes daquele cineasta, entre a metafísica religiosa e a “idéia do Homem-Sujeito da História”. Esta tensão dialética, porém, como apontam seus estudos, esmaece nos filmes feitos a partir dos anos 70, quando a materialismo histórico é suplantado pela religião. A partir daí o sagrado passa a dar o tom dos filmes e a esperança de revolução advém prioritariamente da reorientação da tradição popular afro-brasileira, do profetismo bíblico e do catolicismo rústico. Como essa reorientação filosófico-existencial repercutiu na qualidade dos filmes do grande cineasta baiano? Como se explica o fato de Glauber ter deixado, a partir de “O dragão da maldade contra o santo guerreiro” (1969), de dar prioridade à “idéia do Homem-Sujeito da História”, já que neste momento a questão do nacional se complexifica com o processo de urbanização? Basta lembrarmos que Torquato Neto e Caetano Veloso, do movimento Tropicalista, neste mesmo contexto, propõem uma neo-antropofagia.

IX - Na minha leitura, desde seu primeiro longa, “Barravento”, Glauber expressa esse movimento duplo de atribuir ao homem a condição de sujeito da história e, ao mesmo tempo, armar o seu jogo de modo que a própria lógica da história depende da força do que a própria religião do oprimido afirma, mesmo quando este mostra seus limites. “Deus e o diabo” proclama que a “terra é do homem”, mas todo o seu estilo afirma uma teleologia da história que é de inspiração bíblica, de tipo profético, um mundo em que a ação humana se encaixa num esquema que, por ser dado, permite certezas. Em “Terra em transe”, temos o drama barroco que é a expressão exasperada do desencanto provocado pela derrota política, desencanto aliado à convicção de que tão cedo nada poderá acontecer no teatro corrosivo da história dominada por forças indesejáveis. A partir de “O dragão da maldade”, o teatro da revolução como promessa – passa a ser trabalhado como algo que, estando presente e evocado em seus filmes, está fora do centro da história. Está numa condição marginal de que deve ser retirado. Ele passa a trabalhar a dolorosa crise da história tal como antes concebida. Nesta crise, é preciso identificar as forças vivas, o que tem potencial de transformação: o drama passa a opor a decadência (pulsão de morte) dos poderosos à dignidade (pulsão de vida) dos oprimidos, o que traz a religião popular para o campo da revolução, pois é vista como expressão inconsciente da rebeldia. Aqui, embora em total acordo com a antropofagia como método de criação, Glauber manteve sua postura reticente face ao universo urbano, sem dúvida, mas sem nunca deixar de reconhecer o lado trágico desta sua não reconciliação com a cidade, fonte dos aspectos mais dolorosos desse sentimento de crise “de longo prazo” que dominou o seu cinema. É interessante ver o seu olhar para a cidade de Roma no filme “Claro”, e seu olhar para Brasília em “A idade da terra”, obra que traz a imagem desta esperança camponesa (de longo prazo) que se sabe soterrada por um monumental faz-de-conta das elites, o qual ele desenha com muita ironia, mas nem sempre, neste filme, com a força típica do seu cinema. A metáfora da cidade como pedra e túmulo é muito expressiva; a elite local expõe seu jogo de máscaras de forma extraordinária. Mas o espetáculo da religião que se justapõe a tal descalabro só encontra seu ponto de articulação na voz do próprio Glauber que intervém para proferir o que eu chamo de sermão do planalto, expressão corajosa da crise. Você me pergunta sobre a questão da qualidade estética. Para mim, “Terra em transe” é a obra maior de Glauber, quando o movimento de câmera, o gesto dos atores, a retórica dos discursos, a montagem vertical som-imagem, o estilo indireto livre na composição da narrativa, tudo concorre para a criação de um espaço cênico extraordinário: temos a criação de “palcos suspensos” em que Glauber redefine o estatuto do teatro dentro do cinema e desenha com muito vigor a sua visão barroca da história.

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