terça-feira, 20 de dezembro de 2011

HITCHCOCK




O HOMEM ERRADO (THE WRONG MAN, 1956), de Alfred Hitchcock

Por Wanderson Lima (escritor e professor de Literatura da UESPI)


          Alfred Hitchcock é um desses cineastas que pensa por imagens, o que Deleuze – e não apenas este filósofo – considera a genuína vocação do cinema. Em Hitchcock, não há em geral frases solenes, teses sociais que o filme deva ilustrar. Bem arquitetada, a história flui, plena de pontos suspensivos que convidam o espectador a uma recepção ativa, suplementar. Muitas vezes, porém, seduzido pelo prazer milenar de seguir o desenrolar da trama, este espectador não repara a consciência crítica e irônica hitchcockiana, que vai construindo, com suas escolhas formais, uma metafísica da condição humana, cujo alicerce mais evidente vem do catolicismo, no seio do qual o cineasta foi formado.

          O homem errado (The wrong man, 1956) comprova de modo claro essa vocação do cinema hitchcockiano de concentrar sua grandeza na elaboração formal, sondando a condição humana pela ótica católico-cristã. O argumento de O homem errado lembra, em seu núcleo essencial, o de O processo, de Franz Kafka: a imputação de culpa a um inocente, com sugestivas ressonâncias de um paralelismo com o pecado original. O andamento que Hitchcock dá ao tema, porém, o difere de Kafka, pelo relevo que o cineasta dá à fé do protagonista (brilhantemente interpretado por Henry Fonda) na economia da existência humana e na produção de um sentido para esta existência. 

          Balestrero, o personagem de Fonda, é um músico que vive uma existência familiar pacata, ao lado da esposa, que ama, e de dois filhos. O primeiro diálogo dele com Rose (assim ela se chama), quando chega do clube em que toca todas as noites, introduz pela primeira vez no filme um elemento bastante recorrente no universo de Hitch: a culpa. Por mais amena que seja a conversa que levam, por mais afetivo e compreensivo que seja Balestrero em suas declarações à esposa, sentimos ali a raiz de um conflito, um halo de culpa que um não quer imputar ao outro, e de remorso. O dinheiro é o problema, a matriz do remorso e dos conflitos que fervilham sob o manto de felicidade que cobre aquela família. Neste ponto, Hitchcock prepara um pressuposto para o seu espectador levantar hipóteses sobre a honestidade de ambos, sobre os problemas do passado. Mas, que fique claro, conflitos e problemas “do passado”: no presente, e no que diz respeito à acusação sofrida por Balestrero, ele é inocente. O filme, na verdade, é a encenação do sacrifício de um bode expiatório. Balestrero é confundido com um assaltante, sofre as mais aviltantes humilhações de uma polícia que, imbuída de uma neutralidade perversa, mina-lhe a dignidade impondo-lhe uma verdadeira “Via crucis” pela cidade, a que ele é forçado a cumprir.

          Entre outras leituras possíveis, O homem errado é um filme sobre a capacidade humana de suportar o sofrimento; não um sofrimento qualquer, mas o padecer da vítima inocente cujo espelho é o sofrimento do Cristo. Apesar disso, o filme de Hitchcock não é uma apologética de um carola. Hitch trabalha num registro sutil, seja na inserção de objetos simbólicos no quadro, seja fazendo a câmera assumir, em alguns momentos, a perspectiva do protagonista. Por exemplo, quando Balestrero é injustamente levado à prisão, a câmera focaliza insistentemente o chão, captando em closes os pés e as algemas, solidarizando-se com o estado de humilhação do protagonista; numa outra cena menos sutil, com Balestrero na cela, a câmera gira rapidamente, simulando a vertigem da personagem e sua indignação perplexa. Porém, uma das cenas mais significativas, e mais interessantes do filme, é a culminância do processo de enlouquecimento (ou um nome mais técnico que se dê) de Rose. Ofendida com o marido, vencida por obsessões persecutórias, ela apanha uma escova de cabelo e com ela acerta-lhe a testa e quebra o espelho. A cena é toda eivada de duplos e contrastes, a começar pela sugestiva iluminação expressionista; dois contrastes, porém, ganham maior relevo, em termos de produção de sentido: um deles é o espelho, projeção da duplicidade e da personalidade fendida de Rose e, até certo ponto, de Balestrero também: vale lembrar que ambos são dominados por um forte sentimento de culpa pela fraqueza do outro, ou pela ingerência financeira por que passam. A diferença é que, Balestrero, por ter fé, reage com estoicismo diante do sofrimento, pois sabe que há um princípio organizador do mundo, e que esse princípio está ao lado dos bons e dos justos; Rose, sem um apoio, sucumbe ao desespero. Este contraste entre ambos é reforçado pelo outro símbolo de grande relevo da cena: dois quadros postos na parede, próximos ao espelho que se quebrou. Um desses quadros representa a imagem de Jesus, o outro uma imagem “profana”, de uma bela mulher. Obviamente, trata-se de projeções de Balestrato e Rose, dos modos sagrado e profano de se instalar no mundo, que, segundo Mircea Eliade, são as duas modalidades básicas da experiência humana no mundo.

          Neste contraste entre sagrado e profano, o catolicismo de Hitchcock arma uma crítica ao modelo de sociedade individualista e centrada num padrão de vida imanente no qual a terapêutica triunfou. Rose é internada numa clínica porque lhe faltou a fé na qual Balestrero perseverou, e cujo ícone mais recorrente no filme é o terço que ele sempre traz consigo. É sintomático que o verdadeiro assaltante seja descoberto no momento em que Balestrero reza, como sugere a fusão das imagens do protagonista e do facínora, recurso em geral “brega”, mas que nesta cena abre um leque de possibilidades interpretativas.

          É de se ressaltar que depois de inocentado, na delegacia, Balestrero não alimenta ódio ou desejo de vingança, seja com os ineptos investigadores, seja com as duas mulheres que enganadamente o “reconheceram” como o criminoso. Isto é, ele mostra-se um lídimo cristão, o que reforça que sua fé ao longo do conflito não foi apenas uma muleta. Ao final, numa clara concessão ao público, Hitchcock usa o recurso do letreiro e uma rápida e idílica imagem final para nos assegurar de que Rose se curou. Curou-se, mas, porque sem fé, teve de suportar anos de terapia.

          Análises à parte mereceriam a econômica e sugestiva música de Bernard Herrmann e a sombria e expressiva fotografia de Robert Burks, decisivas para estabelecer o clima pesadeloso do filme e o dilaceramento interior das personagens. O homem errado foi o único filme de Hitchcock baseado em fatos reais; muita gente levou isso em conta em suas análises, ressaltando, entre outras coisas, que o diretor inglês chegou mesmo a filmar com pessoas que viveram o drama. Particularmente, não acho relevante este fato: Hitch é artifício, forma. Filme o que filmar.

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