UMA LAVOURA SEM COLHEITA
( Por Alfredo Werney)
As imagens sonoras e visuais de “Lavoura Arcaica” (2001) são exageradamente belas, impressionam nossos olhos e os ouvidos desde os primeiros minutos de projeção, quando vemos no quadro uma cena de masturbação acompanhada musicalmente pelo som nervoso de um trem. Acredito que muitas pessoas tiveram a mesma sensação que eu tive ao assistir a obra de Luiz Fernando Carvalho. É um filme que foge totalmente dos padrões que observamos no mercado cinematográfico brasileiro. Não é o tipo de obra que vê o sertão de uma forma caricatural, como ocorre nos filmes de Guel Arraes e seus pequenos discípulos. Nem se trata das narrativas fílmicas que se passam nas favelas e nos espaços urbanos do proletariado, com toda aquela estética cansativa que já conhecemos: câmeras trêmulas passando por becos, iluminação espontânea e natural, montagens rápidas e de ritmo frenético, sons de tiros, ruídos e funk carioca, etc. Esse é um dos méritos de “Lavoura Arcaica”: estamos diante de uma produção que se arrisca, não tem medo de experimentar. Por este motivo, a direção da película abre mão das fórmulas prontas que, há muito tempo, agradam o público brasileiro.
Mas há algo que, sinceramente, incomoda: o filme é exageradamente estetizado, pomposo, pretensioso (poderíamos dizer). A presença do diretor – que parece não ter superado o “mito” do cinema de autor criado pelos críticos franceses – chega a ser invasiva e incômoda. A impressão que tive ao ver a obra foi a de que Luiz Fernando, ao longo de todo o filme, quer se auto-afirmar: “Vejam como sei fazer filmes de arte!”, “Vejam como sei extrair poesia da câmera!”, “Vejam como este plano é raro e difícil de ser captado!”. Nesse sentido, a beleza visual dos planos parece servir mais para mostrar o virtuosismo do diretor do que mesmo para construir o discurso fílmico. Não seria exagero dizer que se trata de uma produção feita para os acadêmicos, estudantes universitários e intelectuais que adoram fazer as conhecidas e empolgantes análises formalistas.
Em relação à música, por exemplo, não há como negar: o trabalho de Marco Antônio Guimarães é muito bem composto e avesso ao lugar-comum. Contudo, peca, novamente, pelo esteticismo, pela criação de um exotismo demasiado ornamental: sonoridades orientais, instrumentos incomuns, timbres pouco reconhecíveis, ritmos e pulsações irregulares, sons descontextualizados (como na cena da masturbação de André, em que ouvimos a sonoridade de um trem frenético), citações de obras de Bach, contrastes provocados pelo uso do silêncio, etc – são os elementos que compõem a paisagem sonora da trilha. Todo o cardápio de Guimarães é feito para causar impacto nos ouvidos do público, mas carece de uma relação mais profunda ( e também mais humilde) com a imagem.
É claro que todo esse universo sonoro-visual de que falamos não se distancia da escrita de Raduan Nassar. Com efeito, o livro possui muitos elementos que estão presentes no filme. Devemos dizer que Luiz Fernando Carvalho, em certa medida, soube os captar. Entretanto, o diretor parece querer dar um salto além da perna. O cineasta carioca quer “barroquizar” mais ainda uma obra que já é, por sua natureza, contrastante, embaraçada do ponto de vista da linguagem. Sei que toda “adaptação” é uma recriação, mas em tudo deve haver certo limite.
“Estorvo”, (2000, dirigido por Rui Guerra), por exemplo, foi realizado praticamente na mesma época e possui uma problemática estética um tanto quanto semelhante à de “Lavoura”. No entanto, trata-se de uma obra muito mais sincera e mais rica cinematograficamente. Os seus experimentalismos não são estéreis e nem decorativos. Com efeito, são fundamentais para a construção de sentido do discurso fílmico. Felipe Bragança, em seu texto “A boa arte de Lavoura Arcaica”, resume, de forma inteligente, a postura de Fernando Carvalho: “O falso impacto é pior do que a calmaria. Assim como a retomada apática do sertão por filmes como Central e Eu, Tu, Eles enfraquece a potencialidade daquele espaço, a inventividade no cinema brasileiro não pode correr o risco de se limitar a frágil ruptura autista que Carvalho parece propor”. Esta ruptura de que nos fala Bragança desemboca, às vezes, na pura metalinguagem, no cinema que se esgota na ânsia de expressar o seu próprio código.
Mesmo com todas as ressalvas, seria muito injusto dizer que “Lavoura Arcaica” é uma “adaptação” mal feita, que é um filme ruim. De forma nenhuma. Talvez o defeito – desculpem-me o paradoxo de mau gosto –, esteja no fato de a película ser “bem feita demais”. Não há nela um mínimo espaço para o espectador pensar, degustar as imagens e tentar completar o sentido de uma cena em sua mente. Isso não nos é permitido, pois todos os planos do filme estão povoados de sentidos previamente prontos. Se bem observarmos, tudo está rigorosamente atrelado a um significado, a um símbolo. Esse excesso de formas, cores, sons e símbolos – tal qual uma obra de arte do Rococó – esvazia-se em si mesmo.
Todos os elementos do discurso fílmico parecem estar amarrados à idéia de se construir um cinema poético, daí a repugnância a uma narrativa linear e fria. Walter Carvalho quer provar isso a todo tempo com seus diversos filtros de cor, com seus contrastes, à maneira de uma pintura de Caravaggio. O cenário do filme segue os mesmos passos cambiantes: é de um rigor científico que nos causa certo desconforto. Cada cômodo da casa, cada ambiente do sítio, cada árvore, cada pedra e cada tijolo querem refletir a psique, os estados de espírito das personagens. A casa abandonada (com suas janelas deterioradas e as suas paredes tortuosas), por exemplo, é a própria personalidade conflituosa de André. E o que dizer das personagens? A atuação dos atores é de um dramatismo visual que nos lembra os filmes da era muda do Expressionismo alemão. Já as explosões e a projeção vocais nos lembram os intérpretes de ópera wagneriana. Daniela Sandler nos disse, com razão, em seu texto “Virtudes e pecados”: "Tudo, atores inclusive, parece menos dirigido que coreografado em torno da idéia central e literária, a fonte do filme, o argumento, tirado do livro de Raduan Nassar. Não há espaço para o acaso – o diretor controla tudo, rigoroso. Não à toa, a obra foi feita em isolamento, numa fazenda onde a preparação dos atores durou meses".
A linguagem fílmica, dessa maneira, se transforma em um mero adorno visual e perde a capacidade de “filosofar por imagens”, como nos falara Deleuze. E assim pegamos novamente a obra de Nassar para lermos e nos deleitarmos esteticamente. Deixamos de lado o filme, pois no livro encontramos espaço para criar imagens, pensar, sentir o sabor sonoro-visual e a dimensão espiritual de cada palavra, sem alguém em nosso “pé do ouvido” formulando explicações e nos dizendo a maneira como devemos perceber as coisas. Esta é a lavoura cultivada por Luiz Fernando: muito bonita, mas parece que não colhemos nada dela.
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