A
TRAMA DOS ESPELHOS
Alfredo Werney
Ler
um filme e ver um poema já não nos parece algo paradoxal, principalmente quando
nos referimos ao universo estético das artes modernas. Muitos textos literários
são realmente feitos para serem mais vistos do que lidos. Por outro lado, há
filmes que são produzidos para serem não apenas vistos, mas lidos, como se
estivéssemos, a cada plano fílmico, folheando as páginas de um imenso livro.
No
universo estético das obras artísticas sempre houve um constante intercâmbio de
técnicas. O cinema, por algumas décadas, procurou (e a ainda procura) atingir o
poder narrativo e simbólico da literatura. E a literatura, por sua vez, mostra
muitas vezes o desejo de se esvair na pura visualidade, na sintaxe rápida e
vertiginosa de planos visuais, como vemos na linguagem cinematográfica. No
primeiro caso, podemos citar os filmes com linguagem romanesca, como E o vento levou (1939), em que há de
forma explícita na elaboração do discurso fílmico elementos próprios do modus operandi da escrita literária. No
segundo, podemos citar poetas eminentemente visuais como Augusto de Campos, Décio
Pignatari e Arnaldo Antunes, que procuram dar a linguagem poética ritmos e
cortes rápidos, aproximando-a do processo de montagem cinematográfica. Para eles,
na camada tipográfica do texto está o seu próprio sentido.
Budapeste (2009),
direção de Walter Carvalho, baseado na obra homônima de Chico Buarque, anda
nessa linha tênue entre a palavra, a imagem e o som. É um filme que quer falar
e discutir temas de forma profunda como o faz a alta literatura, mas não quer
abdicar da pura visualidade, da beleza plástica, da textura, da cor e da
composição das imagens sonoras e visuais.
O
texto de Chico Buarque, carregado de tintas borgeanas, é tecido por meio de um
feixe de narrativas, que terminam por confundir o leitor entre o que é “narrar”
e “ser narrado”. É um jogo de espelhos, um labirinto onde a saída é a própria
entrada e a entrada é a própria saída. Talvez nem mesmo existam entrada e
saída, mas sim diversos fios narrativos que, no final, transformam-se em uma
pura contemplação da palavra. Não a palavra que remete ao mundo das coisas, mas
a palavra em si (“a crua palavra,
anterior ao entendimento”).
José Costa (Leonardo Medeiros) é um
ghost-writer, um profissional que escreve discursos, teses, romances e poemas e
vende para outras pessoas – que aparecem como sendo as verdadeiras autoras. Em
uma de suas viagens para um congresso internacional ele é obrigado a fazer uma
escala imprevista na cidade de Budapeste, fato que lhe colocará dentro de um
verdadeiro labirinto linguístico e amoroso, o “jogo de espelhos” de que falamos.
Costa é marido de Vanda (Giovanna Antonelli), uma apresentadora de telejornais
do Rio de Janeiro. Ele conhece Kriska (Gabriella Hámori) em Budapeste e a
partir dela encanta-se pela língua húngara. Em meio às constantes idas e vindas
entre o Rio de Janeiro e Budapeste, José Costa vê sua vida dividida entre o
amor pela esposa brasileira e a paixão pelo idioma húngaro e Kriska. Após sua
estadia na capital da Hungria, passamos a observar o “duplo”, elemento
essencial na trama da obra: Rio de Janeiro/ Budapeste; Vanda/ Kriska; o filho
no Rio/ o filho de Kriska em Budapeste; escritor anônimo/ escritor famoso; o
ser que narra/ o ser que é narrado.
Walter
Carvalho, um dos grandes diretores de fotografia do cinema brasileiro (Abril despedaçado, Amarelo manga, Central do
Brasil, Lavoura Arcaica, Carandiru), mostra-se um cineasta ousado ao filmar
Budapeste. Ele procura “transcriar”, para usar um termo de Augusto de Campos, a
narrativa de Budapeste sem tirar-lhe o espírito e estilo buarqueano. Porém, o diretor
não deixa de imprimir o seu estilo inventivo, por meio de sua câmera criadora e
de seus planos rigorosamente elaborados. Certamente, aí também reside um dos
problemas da película: na ânsia de criar uma linguagem inovadora, Carvalho
perde-se, em alguns momentos, em um esteticismo vazio que prejudica o percurso
narrativo de sua obra. Por exemplo, a sequência em que vemos estátua de Lênin
passando sobre o rio Danúbio – uma clara homenagem ao cineasta grego Theo Angelopoulos
– não nos parece essencial para a construção narrativa de Budapeste, apesar da beleza de seus planos. Também não contribui para
a atmosfera poética do filme.
De
uma forma geral, Carvalho se propõe a transpor a narrativa de Chico Buarque sem
realizar grandes alterações. E, de fato, o diretor paraibano consegue
transmutar o espírito buarqueano do romance. Mas, ainda assim, há no texto de Budapeste
uma linguagem que tende, em muitas passagens, ao “sujo”, ao “baixo” e ao “chulo”,
que não observamos de maneira tão contundente no filme. Algumas vezes, a
linguagem de Carvalho parece-nos demasiado clássica e pura para representar o
mundo obscuro e “obsceno” de determinados trechos do romance de Chico Buarque
de Hollanda.
Seria
injusto, porém, não reconhecer os inúmeros méritos da obra fílmica. O jogo
narrativo espelhado, as idas e vindas da estória, a metalinguagem, a atmosfera
de sonho e irrealidade, a trama entre o cotidiano banal e a pura fantasia,
todos esses elementos foram muito bem explorados no filme. Principalmente
através das imagens captadas de espelhos (os objetos mais presentes na mise-en-scène, sendo uma forte metáfora do
conflito de identidades das personagens), do cenário repleto de elementos
simbólicos, dos sonhos de José Costa, dos momentos de pura poesia (vale
ressaltar a beleza plástica da cena em que ele declama um poema dos Tercetos Secretos, com a sonata de Beethoven
como música incidental), das sequências oníricas em que Costa se depara com ele
mesmo em Budapeste e dos planos rápidos que faz com que, às vezes, não saibamos,
ao certo, se o cenário é o Rio de Janeiro ou Budapeste.
No
desdobramento dessa trama de diferentes vozes e narrativas somos brindados com
dois momentos de grande importância para o “fechamento” da obra fílmica: a
aparição hitchcockiana de Chico Buarque (em um plano de poucos segundos de
duração, como já o fizera tantas vezes o mestre do suspense em suas películas)
e o enquadramento no qual visualizamos a própria câmera que captou as imagens
do filme.
Sobre
esse primeiro momento, podemos dizer que ele serve para confundir e tornar o
jogo entre simulacro e realidade mais perceptível. O fato de o próprio autor do
livro aparecer pedindo um autógrafo torna o debate sobre o problema da autoria
mais instigante (Afinal, quem é realmente o autor? Quem escreveu e quem é
escrito?). Além disso, coloca-nos diante de questões típicas de nossa época,
que muitos a denominam “pós-moderna”: a fragmentação das identidades, a
realidade ambígua e multiforme.
Em
relação ao segundo momento, trata-se de um plano basilar na construção sígnica
do discurso do filme: é por meio dele que se evidencia a ideia de que estamos
diante de “uma narrativa dentro de outra narrativa”, de um universo
metalinguístico. Ao lermos o romance de Chico, escrito com as cores de Jorge
Luis Borges, temos a sensação de que estamos lendo-o no instante em que ele
está sendo escrito. No mesmo compasso, a câmera de Walter Carvalho, nos últimos
planos, também nos revela de forma inusitada: Vocês estão vendo o filme no momento em que ele está sendo filmado!
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