sexta-feira, 18 de março de 2016





ZIZI POSSI: ENTRE A PALAVRA E O SOM MUSICAL


Alfredo Werney

As paisagens sonoras do nosso dia-a-dia nem sempre são muito convidativas. Somos bombardeados de informações, muitas vezes desnecessárias, que vazam pela TV, pelos rádios, pelas ruas, pela internet. Um amigo meu dizia, com razão, que somos obrigados a passar boa parte da vida ouvindo não exatamente aquilo que queríamos ouvir, mas o que os outros nos impõe. Ao entrarmos nos ônibus, nos cinemas, nos shoppings, nas lojas, nos restaurantes e bares não podemos, na maioria das vezes, escolher a música que nos agrada. Nem mesmo podemos deixar de ouvir algo que julgamos indesejável, já que a percepção sonora não é seletiva como a visual. O fato é que esse excesso de estímulos auditivos nos faz perder um pouco da sensibilidade musical. Em geral, costumamos perceber as variadas paisagens sonoras de forma fragmentada, descuidada, sem profundidade, o que dificulta a construção de uma escuta analítica. 

O show da cantora Zizi Possi, realizado no dia 8 de março de 2016, no “Teatro 4 de Setembro” (Teresina), além do deleite estético que me proporcionou, me fez recuperar essa vontade de desenvolver, cada vez mais, uma escuta analítica. Digo isso pensando nas ideias da educadora musical Teca Alencar de Brito, para quem “escutar é perceber os sons por meio do sentido da audição, detalhando e tomando consciência do fato sonoro”. Está além da experiência de ouvir, já que ouvir é um processo puramente fisiológico. “Escutar implica detalhar, tomar consciência do fato sonoro”.

O cuidado que a artista paulista teve com a interpretação do texto, com a afinação, com os arranjos, com a construção da cena musical, com a performance como um todo, exigiu do público (reporto-me aos ouvintes mais atentos) muito mais do que uma entrega emocional.  Todo aquele universo artístico exigiu também do interlocutor uma contemplação intelectual, uma escuta aprofundada. Isso se pensarmos numa comunicação artística mais ampliada e não unicamente no impacto primeiro que o discurso musical provoca em nossa sensibilidade.

Um dos elementos marcantes do trabalho de Zizi é exatamente essa tensão entre o emocional e o cerebral. Há nela um desejo de agradar o público, mas sem cair na banalidade e na emoção fácil. De uma forma geral, ela canta um repertório de difícil execução para os padrões da música popular. Em seu cancioneiro, a mezzo-soprano nos brindou, por exemplo, com obras de Chico Buarque, Tom Jobim, Gilberto Gil, João Bosco, Caetano Veloso, Gonzaguinha, Arnaldo Antunes, dentre outros cancionistas do mesmo calibre.

Mário de Andrade, em seus ensaios reveladores, costumava falar em “música interessada” e “música desinteressada”. Em termos gerais, a primeira categoria se referia às composições feitas para o público dançar e se divertir, sem preocupações intelectuais. A segunda se referia às composições elaboradas para serem escutadas a partir de uma contemplação intelectualizada, como se notava na tradição musical europeia. No universo da música popular brasileira urbana, parece que estas fronteiras se diluem, pois temos uma música popular que é muito rica no aspecto rítmico (ou seja, é sensorial e dançante), mas que também possui uma qualidade musical e literária que não se pode dizer que sejam produzidas apenas para o consumo rápido. Como dizia José Miguel Wisnik, a canção popular brasileira se tornou “um modo de pensar, uma das formas de riflessione brasiliana”. É claro que essas observações não se aplicam a todos os cancionistas, mas apenas ao time formado por craques como Chico Buarque, Gilberto Gil, Edu Lobo, Djavan, Caetano Veloso, Dorival Caymmi, Noel Rosa, entre outros. Não me parece à toa que alguns desses artistas estejam sempre presentes no repertório de Zizi Possi. Ela tem plena consciência do jogo que existe entre a audição analítica e a fisicalidade da canção (a capacidade de incitar a emoção e o movimento do corpo).

A musicalidade de Zizi Possi, próxima dos 60 anos de idade, impressiona. Ela deixa de lado as interpretações auto-elogiosas – aquelas em que a vocalista se põe acima da canção interpretada, como algumas vezes fizera grandes nomes da MPB como Elis Regina – para elaborar uma performance musical mais depurada, a partir de uma íntima ligação com o conteúdo da letra poética. Seu canto busca um equilíbrio e uma clareza apolíneos, por isso ela não abusa dos recursos vocais, embora os domine muito bem. Ela segue a linha de intérpretes como João Gilberto, não no sentido de se pautar pelo “canto falado” bossa-novista. No sentido de descobrir várias canções dentro de uma mesma canção e deixar delas apenas o que é essencial.

Basta pensarmos em músicas como “Meu erro”, dos Paralamas do Sucesso, e “Corsário”, de João Bosco e Aldir Blanc, para vermos como a artista nos mostrou outros modos de escutá-las. Tenho a impressão de que, ao ouvirmos a gravação original dos Paralamas, não damos a atenção devida ao conteúdo dramático da letra, isso porque o ritmo vigoroso do ska escamoteia a tensão amorosa do sujeito lírico (Eu quis dizer/ Você não quis escutar/ Agora não peça / Não me faça promessas). Zizi explora os elementos passionais do texto que estavam latentes, deixando se descortinar, por trás da original, uma outra canção: mais pesada, profunda e melancólica. Em uma entrevista dada ao programa de TV “De frente com Gabi”, em 2012, a vocalista falou de sua tendência em tornar as peças musicais mais melancólicas, o que se relacionava estreitamente com sua própria personalidade.

Na obra “Corsário”, Zizi nos revela, de forma clara e bem articulada, o forte acento ibérico da letra de Aldir Blanc e da música de João Bosco (Meu coração tropical/ está coberto de neve/ Mas ferve em seu cofre gelado/ E a mão vibra e escreve mar/ bendita lâmina grave que fere a parede e traz/ as febres loucas e breves que mancham o silêncio e o cais). Por meio do primoroso arranjo de seu pianista, da rearmonização e de sua interpretação repleta de ousadias rítmicas e melódicas, conseguimos deslindar determinados aspectos músico-literários de “Corsário” que pareciam estar “coberto de neve”, como o lirismo nostálgico próprio da tradição lusitana.

É válido dizer que todo esse artesanato musical brota de um rigoroso trabalho com o texto e com o material melódico das obras interpretadas. Para mim, está claro que a cantora entende que a dimensão literária da canção ocupa um lugar central na construção de sentido do discurso musical, portanto não pode ser delegada a um segundo plano. Esse fato me faz lembrar a teoria de Luiz Tatit que, em suas pesquisas de semiótica, nos mostrou que os efeitos de sentidos da canção são gerados a partir da articulação entre elementos prosódicos e musicais. Isto é, o sentido de uma música cantada só pode ser percebido de forma orgânica quando examinamos o malabarismo que há, principalmente, entre texto e melodia. Malabarismo é o termo correto mesmo, pois o autor de Semiótica da canção compara o cancionista com um malabarista, já que a ele cabe a difícil e encantadora tarefa de manipular com destreza as palavras e os sons musicais. E para que a canção se materialize, é fundamental a existência de um intérprete, que não deixa de ser igualmente um criador.

Essa breve incursão na teoria de Luiz Tatit servirá para dizer que Zizi Possi possui uma consciência muito aguda de todo esse processo de composição da música popular. A longa convivência com textos poéticos – alguns inclusive são recitados com frequência em seus shows – fez com que ela adquirisse uma capacidade de fixar, por meio de suas interpretações, novas possibilidades de leituras de canções já consagradas. Desse modo, o requintado tratamento que ela dá à palavra e à música faz com que se engendrem efeitos de sentidos originais. Não seria exagero dizer que ela não apenas canta (no sentido restrito do termo), mas assume, verdadeiramente, diferentes papéis e vozes dramáticas. A pujante interpretação de “Pedaço de mim” (Chico Buarque) é, nesse sentido, exemplar: nela a cantora encarna o papel da mãe que perde o filho e se desespera. Canta como se estivesse, de fato, no palco da peça “Ópera do Malandro”, de onde a canção foi colhida.

Quando penso na notável carreira da cantora paulista, acredito piamente que o sucesso dela é resultado de um trabalho árduo e não exclusivamente de seu talento. Percebemos que sua técnica vocal é estruturada a partir de elementos do canto lírico (ela tem uma ligação forte com a música italiana, até mesmo pela sua descendência), do canto popular brasileiro, além de recursos como o belting, que é uma técnica de projeção vocal amplamente utilizada no teatro musical norte-americano. A convivência com múltiplas técnicas exige do músico uma enorme dedicação, um estudo meticuloso dos componentes que estruturam a arte musical. Vale lembrar que Zizi Possi cursou, por algum tempo, “Composição e Regência” na Universidade Federal da Bahia, uma das melhores do Brasil nessa área.

Outro ponto forte da intérprete é o seu minucioso rendilhado com a dinâmica musical. Ela atinge um nível de execução muito alto, principalmente no que se refere aos contrastes de intensidade, ao crescendo e ao decrescendo. Sua voz quando chega a regiões muito agudas – ao invés de se criar uma tensão, que é própria do fraseado mais alto – ela flutua numa leveza impressionante. Por isso, nunca é est­­­ridente, irritante. Algumas vezes é palavra viva, outras vezes puro som musical. Além de todos esses elementos, não poderíamos deixar de notar sua espontaneidade no palco, sua rigorosa escolha do repertório, sua capacidade de cantar com boa pronúncia em diversos idiomas, o seu figurino sempre ­­­adequado e sua cena musical bem elaborada. É evidente que há por trás de toda essa beleza a regência artística de seu irmão, o teatrólogo José Possi Neto, produtor da cantora há muitas décadas.

E o que dizer do trabalho do pianista, clarinetista e maestro Jether Garotti Júnior? Um músico admirável, que forma uma parceria com a mezzo-soprano que já ultrapassa os 20 anos. Sua concepção de acompanhamento pianístico, tema de sua dissertação de Mestrado pela UNICAMP, extrapola as noções tradicionais, pois ele acrescenta diversas camadas de sentido às interpretações de Zizi Possi, ao invés de tão somente realizar a condução rítmico-harmônica. Em Teresina, o maestro trouxe teclados, mas ele costuma utilizar o piano de cauda, o que dá para as apresentações uma fisionomia de recital clássico (mostrando, mais uma vez, que o trabalho da intérprete está permeado por uma estética que valoriza componentes da tradição erudita). Os teclados de Jether Júnior participam de maneira decisiva no efeito geral produzido pela canção. São, na verdade, parte indissociável delas. Isto porque ele compreende o acompanhamento como algo inventivo e não apenas como um acessório do canto. Por meio de pedais de expressão e do uso de samplers, o maestro faz com que seus teclados tenham uma gama de dinâmicas e texturas próprias de um piano acústico. É notória a sincronia de seu instrumento com os crescendo e decrescendo, com os melismas, com os glissandos, com os contrastes entre forte e fraco, com o acelerando e o ralentando, com as flutuações da voz da mezzo-soprano.

Ao projetar as primeiras notas no palco do “Teatro 4 de Setembro”, Zizi Possi me fez repensar a maneira, muitas vezes rápida e superficial, que apreciamos a música popular. E tenho a consciência de que essa arte é, sem dúvida, uma das formas mais poderosas de compreender a cultura brasileira. É o nosso produto cultural por excelência, o que fez Caetano Veloso dizer, em tom de ironia: “Se você tem uma ideia incrível/ É melhor fazer uma canção /Está provado que só é possível /Filosofar em alemão”.

O historiador Marcos Napolitano estava correto ao afirmar que a música popular no Brasil é “um lugar de mediações, fusões, encontros de diversas etnias, classes e regiões”. Porém, não se pode negar que, no contexto atual, a maior parte das canções populares divulgadas nos meios de comunicação está longe de desempenhar o papel que já teve em décadas passadas. Em sua maioria, elas são inexpressivas, frívolas e feitas simplesmente para o consumo apressado. Por isso, não é uma tarefa das mais fáceis encontrar trabalhos musicais como o de Zizi Possi, que se mostra, ao mesmo tempo, comunicativo e denso.

Para além do entusiasmo que provocou no público e do inegável efeito catártico próprio do canto, o show da cantora paulista foi, para mim, uma espécie de exercício cognitivo, um convite à reflexão. E mais que isso: foi um daqueles raros momentos de epifania em que a canção nos “toma sem pensar, num gesto muito forte, com a mais pura emoção”.

4 comentários:

  1. Bravo, Professor!! Parabéns pelo maravilhoso texto. Deu uma vontade imensa de assisti o Show da Zizi.
    Um Abraço,

    Dimael Barbosa
    Música/Parfor

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    1. Pois é. Acho que devemos combinar qualquer dia desses de levar toda turma de música do PARFOR para apreciar um show de MPB e desenvolver a escuta analítica. Valeu grande Dimael!

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  2. Excelente e profinda reflexão Alfredo, você vai desvendendando e depurando cada filigrana do trabalho de Zizi com uma escrita plea de personalidade e de conhecimento de causa. A leitura deste texto me trouxe ricas informações e seus alicerces teóricos elucidam seu mergulho denso no universo da canção. Parabéns!

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  3. Obrigado querida pelas considerações. E desejo que você continue pesquisando o mundo encantado da canção brasileira, estudiosa séria das relações entre música e literatura que você é!

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