ZIZI POSSI: ENTRE A PALAVRA E O SOM MUSICAL
Alfredo
Werney
As paisagens sonoras do nosso
dia-a-dia nem sempre são muito convidativas. Somos bombardeados de informações,
muitas vezes desnecessárias, que vazam pela TV, pelos rádios, pelas ruas, pela internet.
Um amigo meu dizia, com razão, que somos obrigados a passar boa parte da vida
ouvindo não exatamente aquilo que queríamos ouvir, mas o que os outros nos
impõe. Ao entrarmos nos ônibus, nos cinemas, nos shoppings, nas lojas, nos
restaurantes e bares não podemos, na maioria das vezes, escolher a música que nos
agrada. Nem mesmo podemos deixar de ouvir algo que julgamos indesejável, já que
a percepção sonora não é seletiva como a visual. O fato é que esse excesso de estímulos
auditivos nos faz perder um pouco da sensibilidade musical. Em geral,
costumamos perceber as variadas paisagens sonoras de forma fragmentada,
descuidada, sem profundidade, o que dificulta a construção de uma escuta
analítica.
O show da cantora Zizi Possi, realizado
no dia 8 de março de 2016, no “Teatro 4 de Setembro” (Teresina), além do deleite
estético que me proporcionou, me fez recuperar essa vontade de desenvolver,
cada vez mais, uma escuta analítica. Digo isso pensando nas ideias da educadora
musical Teca Alencar de Brito, para quem “escutar é perceber os sons por meio
do sentido da audição, detalhando e tomando consciência do fato sonoro”. Está
além da experiência de ouvir, já que ouvir é um processo puramente fisiológico.
“Escutar implica detalhar, tomar consciência do fato sonoro”.
O cuidado que a artista
paulista teve com a interpretação do texto, com a afinação, com os arranjos, com
a construção da cena musical, com a performance como um todo, exigiu
do público (reporto-me aos ouvintes mais atentos) muito mais do que uma entrega
emocional. Todo aquele universo artístico
exigiu também do interlocutor uma contemplação intelectual, uma escuta
aprofundada. Isso se pensarmos numa comunicação artística mais ampliada e não
unicamente no impacto primeiro que o discurso musical provoca em nossa
sensibilidade.
Um dos elementos marcantes do
trabalho de Zizi é exatamente essa tensão entre o emocional e o cerebral. Há
nela um desejo de agradar o público, mas sem cair na banalidade e na emoção
fácil. De uma forma geral, ela canta um repertório de difícil execução para os
padrões da música popular. Em seu cancioneiro, a mezzo-soprano nos brindou, por
exemplo, com obras de Chico Buarque, Tom Jobim, Gilberto Gil, João Bosco, Caetano
Veloso, Gonzaguinha, Arnaldo Antunes, dentre outros cancionistas do mesmo
calibre.
Mário de Andrade, em seus
ensaios reveladores, costumava falar em “música interessada” e “música desinteressada”.
Em termos gerais, a primeira categoria se referia às composições feitas para o
público dançar e se divertir, sem preocupações intelectuais. A segunda se
referia às composições elaboradas para serem escutadas a partir de uma
contemplação intelectualizada, como se notava na tradição musical europeia.
No universo da música popular brasileira urbana, parece que estas fronteiras se
diluem, pois temos uma música popular que é muito rica no aspecto rítmico (ou
seja, é sensorial e dançante), mas que também possui uma qualidade musical e
literária que não se pode dizer que sejam produzidas apenas para o consumo
rápido. Como dizia José Miguel Wisnik, a canção popular brasileira se tornou “um
modo de pensar, uma das formas de riflessione
brasiliana”. É claro que essas observações não se aplicam a todos os
cancionistas, mas apenas ao time formado por craques como Chico Buarque,
Gilberto Gil, Edu Lobo, Djavan, Caetano Veloso, Dorival Caymmi, Noel Rosa, entre
outros. Não me parece à toa que alguns desses artistas estejam sempre presentes
no repertório de Zizi Possi. Ela tem plena consciência do jogo que existe entre
a audição analítica e a fisicalidade da canção (a capacidade de incitar a
emoção e o movimento do corpo).
A musicalidade de Zizi Possi,
próxima dos 60 anos de idade, impressiona. Ela deixa de lado as interpretações auto-elogiosas
– aquelas em que a vocalista se põe acima da canção interpretada, como algumas
vezes fizera grandes nomes da MPB como Elis Regina – para elaborar uma performance musical mais
depurada, a partir de uma íntima ligação com o conteúdo da letra poética. Seu
canto busca um equilíbrio e uma clareza apolíneos, por isso ela não abusa dos recursos
vocais, embora os domine muito bem. Ela segue a linha de intérpretes como João
Gilberto, não no sentido de se pautar pelo “canto falado” bossa-novista. No
sentido de descobrir várias canções dentro de uma mesma canção e deixar delas apenas
o que é essencial.
Basta pensarmos em músicas como
“Meu erro”, dos Paralamas do Sucesso,
e “Corsário”, de João Bosco e Aldir Blanc, para vermos como a artista nos
mostrou outros modos de escutá-las.
Tenho a impressão de que, ao ouvirmos a gravação original dos Paralamas, não damos a atenção devida ao
conteúdo dramático da letra, isso porque o ritmo vigoroso do ska escamoteia a
tensão amorosa do sujeito lírico (Eu quis dizer/ Você não quis escutar/ Agora
não peça / Não me faça promessas). Zizi explora os elementos passionais do
texto que estavam latentes, deixando se descortinar, por trás da original, uma
outra canção: mais pesada, profunda e melancólica. Em uma entrevista dada ao
programa de TV “De frente com Gabi”, em 2012, a vocalista falou de sua
tendência em tornar as peças musicais mais melancólicas, o que se relacionava estreitamente com sua própria personalidade.
Na obra “Corsário”, Zizi nos
revela, de forma clara e bem articulada, o forte acento ibérico da letra de
Aldir Blanc e da música de João Bosco (Meu coração tropical/ está coberto de
neve/ Mas ferve em seu cofre gelado/ E a mão vibra e escreve mar/ bendita
lâmina grave que fere a parede e traz/ as febres loucas e breves que mancham o
silêncio e o cais). Por meio do primoroso arranjo de seu pianista, da rearmonização e de sua interpretação repleta de ousadias rítmicas e melódicas, conseguimos deslindar
determinados aspectos músico-literários de “Corsário” que pareciam estar “coberto de
neve”, como o lirismo nostálgico próprio da tradição lusitana.
É válido dizer que todo esse
artesanato musical brota de um rigoroso trabalho com o texto e com o material
melódico das obras interpretadas. Para mim, está claro que a cantora entende
que a dimensão literária da canção ocupa um lugar central na construção de
sentido do discurso musical, portanto não pode ser delegada a um segundo plano.
Esse fato me faz lembrar a teoria de Luiz Tatit que, em suas pesquisas de
semiótica, nos mostrou que os efeitos de sentidos da canção são gerados a
partir da articulação entre elementos prosódicos e musicais. Isto é, o sentido de
uma música cantada só pode ser percebido de forma orgânica quando examinamos
o malabarismo que há, principalmente, entre texto e melodia. Malabarismo é o
termo correto mesmo, pois o autor de Semiótica
da canção compara o cancionista com um malabarista, já que a ele cabe a
difícil e encantadora tarefa de manipular com destreza as palavras e os sons musicais. E para que a
canção se materialize, é fundamental a existência de um intérprete, que não
deixa de ser igualmente um criador.
Essa breve incursão na teoria
de Luiz Tatit servirá para dizer que Zizi Possi possui uma consciência muito
aguda de todo esse processo de composição da música popular. A longa
convivência com textos poéticos – alguns inclusive são recitados com frequência
em seus shows – fez com que ela adquirisse uma capacidade de fixar, por meio de
suas interpretações, novas possibilidades
de leituras de canções já consagradas. Desse modo, o requintado
tratamento que ela dá à palavra e à música faz com que se engendrem efeitos de
sentidos originais. Não seria exagero dizer que ela não apenas canta (no
sentido restrito do termo), mas assume, verdadeiramente, diferentes papéis e
vozes dramáticas. A pujante interpretação de “Pedaço de mim” (Chico Buarque) é,
nesse sentido, exemplar: nela a cantora encarna o papel da mãe que perde o
filho e se desespera. Canta como se estivesse, de fato, no palco da peça “Ópera
do Malandro”, de onde a canção foi colhida.
Quando penso na notável carreira
da cantora paulista, acredito piamente que o sucesso dela é resultado de um trabalho
árduo e não exclusivamente de seu talento. Percebemos que sua técnica vocal é
estruturada a partir de elementos do canto lírico (ela tem uma ligação forte
com a música italiana, até mesmo pela sua descendência), do canto popular
brasileiro, além de recursos como o belting,
que é uma técnica de projeção vocal amplamente utilizada no teatro musical
norte-americano. A convivência com múltiplas técnicas exige do músico uma
enorme dedicação, um estudo meticuloso dos componentes que estruturam a arte
musical. Vale lembrar que Zizi Possi cursou, por algum tempo, “Composição e Regência”
na Universidade Federal da Bahia, uma das melhores do Brasil nessa área.
Outro ponto forte da intérprete
é o seu minucioso rendilhado com a dinâmica musical. Ela atinge um nível de
execução muito alto, principalmente no que se refere aos contrastes de
intensidade, ao crescendo e ao decrescendo. Sua voz quando chega a
regiões muito agudas – ao invés de se criar uma tensão, que é própria do
fraseado mais alto – ela flutua numa leveza impressionante. Por isso, nunca é
estridente, irritante. Algumas vezes é palavra viva, outras vezes puro som
musical. Além de todos esses elementos, não poderíamos deixar de notar sua
espontaneidade no palco, sua rigorosa escolha do repertório, sua capacidade de
cantar com boa pronúncia em diversos idiomas, o seu figurino sempre adequado
e sua cena musical bem elaborada. É evidente que há por trás de toda essa
beleza a regência artística de seu irmão, o teatrólogo José Possi Neto,
produtor da cantora há muitas décadas.
E o que dizer do trabalho do
pianista, clarinetista e maestro Jether Garotti Júnior? Um músico admirável,
que forma uma parceria com a mezzo-soprano que já ultrapassa os 20 anos. Sua
concepção de acompanhamento pianístico, tema de sua dissertação de Mestrado
pela UNICAMP, extrapola as noções tradicionais, pois ele acrescenta diversas
camadas de sentido às interpretações de Zizi Possi, ao invés de tão somente
realizar a condução rítmico-harmônica. Em Teresina, o maestro trouxe teclados,
mas ele costuma utilizar o piano de cauda, o que dá para as apresentações uma fisionomia
de recital clássico (mostrando, mais uma vez, que o trabalho da intérprete está
permeado por uma estética que valoriza componentes da tradição erudita). Os
teclados de Jether Júnior participam de maneira decisiva no efeito geral
produzido pela canção. São, na verdade, parte indissociável delas. Isto porque ele compreende o
acompanhamento como algo inventivo e não apenas como um acessório do canto.
Por meio de pedais de expressão e do uso de samplers,
o maestro faz com que seus teclados tenham uma gama de dinâmicas e texturas próprias
de um piano acústico. É notória a sincronia de seu instrumento com os crescendo e decrescendo, com os melismas, com os glissandos, com os contrastes entre forte e fraco,
com o acelerando e o ralentando, com as flutuações da voz da mezzo-soprano.
Ao projetar as primeiras notas
no palco do “Teatro 4 de Setembro”, Zizi Possi me fez repensar a maneira,
muitas vezes rápida e superficial, que apreciamos a música popular. E tenho a
consciência de que essa arte é, sem dúvida, uma das formas mais poderosas de
compreender a cultura brasileira. É o nosso produto cultural por excelência, o
que fez Caetano Veloso dizer, em tom de ironia: “Se você tem uma ideia
incrível/ É melhor fazer uma canção /Está provado que só é possível /Filosofar
em alemão”.
O historiador Marcos Napolitano
estava correto ao afirmar que a música popular no Brasil é “um lugar de
mediações, fusões, encontros de diversas etnias, classes e regiões”. Porém, não
se pode negar que, no contexto atual, a maior parte das canções populares divulgadas
nos meios de comunicação está longe de desempenhar o papel que já teve em
décadas passadas. Em sua maioria, elas são inexpressivas, frívolas e feitas
simplesmente para o consumo apressado. Por isso, não é uma tarefa das mais fáceis
encontrar trabalhos musicais como o de Zizi Possi, que se mostra, ao mesmo
tempo, comunicativo e denso.
Para além do entusiasmo que
provocou no público e do inegável efeito catártico próprio do canto, o show da
cantora paulista foi, para mim, uma espécie de exercício cognitivo, um convite
à reflexão. E mais que isso: foi um daqueles raros momentos de epifania em que
a canção nos “toma sem pensar, num gesto muito forte, com a mais pura emoção”.
Bravo, Professor!! Parabéns pelo maravilhoso texto. Deu uma vontade imensa de assisti o Show da Zizi.
ResponderExcluirUm Abraço,
Dimael Barbosa
Música/Parfor
Pois é. Acho que devemos combinar qualquer dia desses de levar toda turma de música do PARFOR para apreciar um show de MPB e desenvolver a escuta analítica. Valeu grande Dimael!
ExcluirExcelente e profinda reflexão Alfredo, você vai desvendendando e depurando cada filigrana do trabalho de Zizi com uma escrita plea de personalidade e de conhecimento de causa. A leitura deste texto me trouxe ricas informações e seus alicerces teóricos elucidam seu mergulho denso no universo da canção. Parabéns!
ResponderExcluirObrigado querida pelas considerações. E desejo que você continue pesquisando o mundo encantado da canção brasileira, estudiosa séria das relações entre música e literatura que você é!
ResponderExcluir