VELHO CHICO: QUANDO A TELENOVELA VIRA ARTE...
Alfredo Werney
Nunca escrevi uma linha sequer sobre as telenovelas, ainda que
fosse unicamente com a intenção de criticá-las. Mas agora me arrisco, mesmo
sabendo que se trata de um produto audiovisual que, em geral, não apresenta
nada que instigue verdadeiramente nossa percepção. Na verdade, passei algumas
semanas sem assistir “Velho Chico” (TV Globo, 2016), até mesmo porque as repentinas guinadas do
roteiro e as mudanças cênicas provocadas pela estranha morte do ator Domingos
Montagner, diminuiu bastante meu interesse pela obra. Na semana passada,
entretanto, pude apreciar – quase como quem assiste a um filme de
arte – as paisagens sonoras e visuais dessa novela. De “puro entretenimento”,
como meus amigos inteligentes costumam chamar as novelas (e eles tem razão, se
pensarmos na maioria delas), “Velho Chico” atingiu a condição de expressão artística.
Ouvi até alguns colegas exclamarem: “Parece filme!”.
Desde o capítulo de estreia, no dia 14 de março de 2016, essa obra
dirigida por Luiz Fernando Carvalho e escrita por Benedito Ruy Barbosa e Bruno
Luperi, mostrou-se diferente da maioria das produções do mesmo gênero. Vários
elementos me despertaram a atenção: a rigorosa elaboração de seus planos
visuais, a ousadia da direção e da fotografia, o tom épico utilizado para
representar o sertão, o bom elenco, a beleza das tomadas à maneira dos
faroestes de Sérgio Leone, a montagem expressiva e a trilha musical de Tim
Rescala. Além disso, fiquei feliz com a bela homenagem que fizeram para o
escritor Gabriel Garcia Márquez. Em algumas cenas víamos o coronel Jacinto de
Sá Ribeiro (Tarcísio Meira), esquecido em sua fazenda, com apenas seu galo
imponente preso aos seus braços, esperando o retorno do filho (Rodrigo
Santoro), jovem boêmio que residia em Salvador-BA. A narrativa trazia
componentes que nos reportava claramente ao romance “Ninguém escreve ao
coronel”, do ano de 1961.
O capítulo 169 de “Velho Chico”, apresentado na semana passada,
mostrou a busca desesperada de Afrânio (Antônio Fagundes), ao longo do rio São
Francisco, por seu filho Martim (Lee Taylor). Luzes estouradas, planos cheio de
flashes e de cortes vertiginosos sincronizados com ruídos de trovões, sobreposição
de imagens e de sons dando um efeito de simultaneidade, trilha musical engenhosa
que oscilava entre o registro clássico e o popular, acompanharam a saga do
personagem pelo sertão nordestino. A metáfora da cena me pareceu clara: o
universo simbólico das imagens nos remetia a uma passagem de “Dom Quixote”, de Miguel
de Cervantes. Afrânio, num ataque de loucura, por se sentir culpado pela
relação degradada com o filho mais novo, começou a vaguear pelo sertão. Dentre
esses momentos de suposto devaneio, ele atacou, com uma espécie de cajado que
levava nas mãos, os moinhos de vento da beira do rio. O personagem, já despido
de sua peruca (isto é, de sua arrogância de coronel), conversava com ele mesmo,
a partir de um diálogo dramático e revelador, fazendo uma sondagem interior de
suas atitudes e realizando um balanço final de sua existência. Cícero (Marcos
Palmeira) representou na referida cena uma espécie de Sancho Pança do sertão.
Ele tentava, sem êxito, trazer o coronel de volta à “realidade”, mostrando que
tudo aquilo era um momento de alucinação. O fato é que as aparições de Martim,
vista por Afrânio em tomadas subjetivas, confundia nossa percepção. Estaria o
pai, de fato, vendo o filho ou era apenas devaneio?
Não se tratava de cinema, no rigor do termo, mas estávamos diante
de uma obra televisiva muito particular, produzida com intenções artísticas e
não tão somente com o intuito de provocar efeitos emocionais no público. O que
víamos na TV eram cenas filmadas magistralmente por meio de planos sugestivos e
de uma montagem mais próxima da linguagem fílmica, com imagens de embarcações
fantasmas e carcarás sombrios, revelando a degradação psicológica de um pai
arrependido pelo distanciamento do filho. A tomada em mergulho, que mostrou Afrânio
caminhando na areia, cercado pelas águas do velho Chico, sintetizou todo o
capítulo. Ela revelou a angústia da figura paterna, cuja ganância e soberba fez
com que se enclausurasse dentro de si mesmo, criando uma verdadeira ilha. E o
que dizer da trilha? A música que Tim Rescala elaborou para a sequência foi
composta por uma solitária e soturna flauta, ressaltando a solidão e o vazio
interior de Afrânio – um instante de total comunhão entre música e dramaturgia.
Um dos planos mais bonitos, a meu ver, foi quando o personagem
atacou os moinhos e a câmera se afastou lentamente dele, através de um
expressivo travelling vertical. A câmera passou a filmá-lo numa plongé cheia de sugestões, fazendo com
que a imagem do coronel golpeando o moinho quase sumisse da tela e fosse
“esmagada” visualmente por este objeto, com suas gigantescas hélices. Ali era o
momento em que o pai se apequenava diante do mundo e se perdia na paisagem sertaneja:
uma metáfora de sua própria condição. Toda a construção cênica, mais uma vez,
foi muito bem apoiada pela música de Rescala, que optou pelo uso de um efeito
de delay nos instrumentos de cordas. Vale notar também que o galho de árvore
que o personagem carregava na mão, algumas vezes, estendia-se por cima de seus
ombros e nos fazia lembrar a imagem de Cristo na cruz.
De uma forma geral, o capítulo foi construído a partir de
referências bíblicas (lembremos que o diálogo entre o Afrânio coronel e o Afrânio pai era uma
espécie de reconstrução da tentação de Cristo no deserto), de uma ambientação
dramática que procurou recriar o universo de Dostoievski (um dos autores
preferidos de Luiz Fernando Carvalho, segundo ele mesmo), da ideia de culpa da
mitologia cristã e de intertextos com “Dom Quixote”. Tudo isso orquestrado de maneira
tensa, tropicalista, inventiva. Uma síntese bastante feliz, muito distante do
que se espera de uma dramaturgia feita para o entretenimento do grande público.
Sem exageros, pude ver nesse capítulo cenas como há muito tempo não via nem
mesmo no cinema brasileiro de arte. Digo isso não só pelos intertextos
presentes, que se tornou uma das marcas do estilo de Carvalho, mas também pela
concepção cênica e visual como um todo. Aliás, vale dizer que os intertextos
não representaram meras referências, mas sim ressonâncias que ampliaram a força
da dramaturgia, tornando-a mais rica e mais profunda. É verdade que estes
procedimentos artísticos já foram muito experimentados, do cinema clássico ao
moderno. Mas, ainda assim, este fato não nos tira o encanto de vê-los numa
narrativa de telenovela. Como nos disse Ferreira Gullar, estamos diante de um
gênero audiovisual realmente limitado, porque é um produto comercial que se
apoia, quase sempre, em estereótipos. E, na visão de Gullar, a culpa dessa
limitação não é nem tanto do diretor e dos produtores, mais sim das próprias
regras impostas pelo gênero.
Acredito
que, para muitos, minha fala deve estar soando excessiva. De qualquer modo, vale
a pena, ainda que momentaneamente, nos despirmos do preconceito, “raspar a
tinta com que nos pintaram os sentidos” – como nos disse o poeta Alberto Caeiro
– e apreciarmos algumas passagens dessa novela, que, embora tenha pontos
baixos, consegue alçar à categoria de arte em muitos momentos de sua
estruturação dramática. Na realidade, “Velho Chico” me faz pensar no “Caso
Pestana”, aquele do conto de Machado de Assis. Pestana era um exímio compositor
de polcas, mas as renegava, porque queria ser reconhecido por suas sinfonias
eruditas. Passou a vida escondendo o que sabia fazer de melhor, para se maquiar
de compositor clássico e se mostrar culto. Guardada as proporções, parece ser o
mesmo caso da telenovela: o Brasil é um dos países que melhor produz telenovelas
no mundo, mas também é nesse mesmo país que a população letrada mais zomba das
produções feitas para TV, sobretudo os intelectuais de esquerda que acreditam
ingenuamente que a Globo é responsável por todas as mazelas sociais do país. Em
outros termos: parece que nos sentimos profundamente envergonhados pelo fato de
fazermos boas telenovelas.
É evidente
que a telenovela não é, em sua quase totalidade, alta dramaturgia. Mas penso
que, além de entreter, ela pode também promover momentos de rara beleza e de deleite
estético, como foi esse capítulo 169, construído com a notável atuação de
Antônio Fagundes, ator com vasta experiência no cinema. Não creio, seguindo os passos da maioria de
meus amigos que gostam de cinema e de boa literatura, que a telenovela atinja o
nível das grandes experiências cinematográficas e literárias, até mesmo pela
sua própria natureza mercadológica e pela sua longa duração, mas a influência
que ela exerce no cotidiano e no imaginário do brasileiro não pode simplesmente
ser negligenciada. Vale refletirmos sobre o enunciado do professor de
comunicação Ciro Marcondes Filho, quando ele diz: “O elemento vivo das pessoas,
seu ‘motor’, aquilo que as faz ter vontade de viver, não está no real, no
cotidiano, nem no mundo do trabalho e sim no imaginário. E a televisão é a
forma eletrônica mais desenvolvida de dinamizar esse imaginário”.
É
visível o nó que há no Brasil entre o pensamento artístico mais elaborado e a
cultura de massa, o que fez José Miguel Wisnik dizer que nossa MPB, por
exemplo, é uma nova forma de gaia ciência,
uma forma de riflessione brasiliana. Essa
tensão não resolvida é o ponto nevrálgico das experiências tropicalistas de
Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Os Mutantes, Tom Zé e outros. Por
sinal, alguns desses compositores e intérpretes estão incluídos na trilha
sonora da telenovela. O fato é que essa mistura de entretenimento com
contemplação mais intelectualizada parece se intensificar quando assistimos a
determinados capítulos de “Velho Chico”. Não há como negar que essa obra
televisiva possui, desde a música inicial de Caetano Veloso e o painel
espalhafatoso de sua abertura, fortes marcas do discurso da Tropicália.
Muito bom!!!
ResponderExcluirperfeito, Alfredo!
ResponderExcluirValeu amiga!
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